Como matar um bicho-papão - Parte VI: EPÍLOGO

Leia também: Parte V: FINAL

"Andréa,

O seu pai foi assassinado. Mas não estou falando do Cairo. Ele não é o seu pai, eu sou. E fui assassinado por ele. Quando eu namorava a sua mãe ele era o meu melhor amigo. Até ambos me traírem juntos. Magoado, mudei de cidade enquanto Cairo e Alessandra passaram a morar juntos. Mas isso foi antes de você nascer.

Por muito tempo descontei em outras mulheres o mal que Alessandra fizera. Me transformei num monstro, um bicho-papão, que comia vítimas indefesas e abandonava os restos na sarjeta. Hoje não me orgulho do que fiz. Muitas inocentes sofreram sem merecer. Mas isso foi antes de você nascer.

Certa vez, voltei e Alessandra, mesmo ainda com Cairo, implorou por meu perdão. Disse que sempre me amou, humilhou e se sujeitou a todos os meus sadismos. Mas eu não sentia mais nada por ela. Eu não conseguia sentir mais nada por ninguém. Por isso, depois de satisfazer o meu desejo por vingança em Alessandra, fui embora, sem saber que você nasceria pouco tempo depois.

Depois, visitando a cidade, vi sua mãe passeando com você. Uma linda menina de cachos dourados que só podia ser minha. Apaixonei-me pelos seus olhos azuis. O amor que senti pela filha superou o ódio pela mãe. Naquele momento, morreu o monstro, o bicho-papão, o coração sádico e endurecido. Eu desejei ser uma pessoa melhor, por você, para você. Foi quando resolvi te conhecer. E quando morri por sua causa. Agora, preciso te ajudar a se livrar do trauma de infância que, sem querer, deixei que acontecesse.

Eu tentei me aproximar de você, mas Cairo não deixou. Então passei a te observar à distância na escola ou brincando na praça. A minha rotina era te amar sozinho e em silêncio. Mas havia um pedófilo ameaçando a cidade. Três crianças já haviam desaparecido. Um dia, percebi que um estranho te seguia. Quando você se afastou das outras crianças, ele te atacou. E eu a ele. Defendi como uma fera a minha menininha daquele monstro. Rolamos pela rua. A briga foi feia e uma multidão nos rodeou assim que soube que era com o pedófilo. Mas quando nos separaram, eu o acusava e ele a mim. E Barrabás ganhou. A dúvida acabou quando um dentre a multidão apontou o dedo. Era Cairo e apontava o dedo para mim. Foi o gatilho para que o povo enlouquecido me linchasse ali mesmo.

Mas não é esse o trauma a que me refiro, Andréa. Você sabe que é aquele que você esconde no íntimo, que sente vergonha ao lembrar, que te faz chorar quando está só. É o motivo de você ter brigado com a sua mãe e ela ter tentado te matar. O trauma a que me refiro é você dormir desde os 12 anos de idade com Cairo, o homem que acredita ser seu pai. De ter dois filhos com o pai- marido enquanto a sua mãe definha em um hospício. Cairo não se contentou em me matar, ele descontou em você todo o ódio que tinha por mim e por sua mãe. E, desta vez, eu deixei minha menininha no escuro com o bicho-papão.

Filha, me perdoe por não te defender quando mais precisou de mim. Eu morreria mil vezes de novo por você, se pudesse. Mas não pude. O que posso fazer é te dizer que todo problema tem solução, mesmo que tardia. Só depende de você. Não agüente mais obedecer quem sempre te enganou e se aproveitou de você. Saiba que eu estou torcendo por você e aguardando o dia em que finalmente poderemos nos abraçar como pai e filha.

Com amor, mais profundo que a morte, um beijo de teu pai,

Jorge.
"

Ele terminou de ler a carta em voz alta, colocou-a sobre a mesa e ficou em silêncio. Ela, de costas, olhava o tempo frio pela janela. Os pensamentos iam longe. Demorou, mas disse:

- A carta ficou boa, vai cumprir o seu objetivo.

- Qual? – perguntou o rapaz vestido de branco.

- Vingança. – respondeu – De um jeito que pode e, se depender do meu santo protetor, vai acontecer.

- Existe alguma verdade na carta? O tal Jorge existiu mesmo? Ele era o pai de Andréa?

- Isso é o que menos importa agora. O importante é você cumprir a sua parte no acordo. Lembra o que fazer?

- Acho que sim... Tenho de entregar a carta para a moça, e somente para ela, quando não estiver acompanhada... Digo que sou seguidor de um vidente famoso já falecido e que psicografou a carta para ela cinco anos atrás...

- Correto. E não se esqueça de dizer que você é de Minas Gerais e que não foi a única carta que o vidente escreveu, mas é a última que você está entregando. Se você cumprir esta pequena tarefa terá a sua recompensa te esperando na minha cama, quantas noites você quiser ou agüentar. Eu prometo fazer coisas que você nunca sonhou existirem.

- Deixa comigo, Alessandra. Amanhã eu começo a cobrar o meu pagamento. Vou até o endereço que me passou, ainda cedo, antes do meu turno aqui, e faço o combinado.

Alessandra foi até a mesa e escreveu o nome da filha no envelope. Andréa Ferreira dos Santos. Em seguida, lacrou o envelope com a carta dentro e entregou nas mãos do auxiliar de enfermeiro. Deu um beijo sensual no futuro amante e retornou até a janela. Enquanto ouvia o barulho da porta sendo trancada por fora, a sua mente insana mostrava como tudo aconteceria.

Sumário
Parte I - A CARTA
Parte II - O PAI
Parte III - A MÃE
Parte IV - O TRAUMA
Parte V - FINAL
Parte VI - EPÍLOGO

Comentários

  1. Estava sem net, Jeff. Vou ler as novidades aqui, começando pelo diálogo.
    Beijos :)

    ResponderExcluir
  2. Jefferson você tem a história compilada em um arquivo TXT?
    Se puder enviar-me eu agradeço.

    ResponderExcluir
  3. Se isso virasse um livro, eu compraria com gosto e ainda ia aí na sua casa pra você por um autógrafo.


    "Do caralho", como eu costumo dizer quando algo é extremamente bom demais da conta, sô.

    Beijo!

    ResponderExcluir

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