O Último Medo

A pequena vila de Arzis mantinha-se há séculos isolada da civilização, graças à sua topografia ímpar. De um lado, a densa floresta com os mais perigosos animais selvagens e armadilhas, com um terreno traiçoeiro em que nem os mais experientes caçadores arriscariam entrar sozinhos. De outro, uma cordilheira de montanhas que se estendia por quilômetros, com noventa por cento do ano de neve e ventos fortíssimos. O único contato com o mundo exterior sempre fora, desde que os primeiros desbravadores alemães pisaram naquelas terras, o porto localizado na tímida enseada. Apesar de ser uma vila que subsistia basicamente da pesca, com as suas centenas de moradores, era amedrontadora devido a sua localização. Qualquer novo visitante, provindo do mar, ao ver Arzis pela primeira vez sentia a sensação claustrofóbica ao saber que a única saída dali seria dar meia-volta e deixá-la para trás.

Hoje, porém, se algum barco visitante parasse no porto, estranharia não ver nenhum pescador ou trabalhador, e todos os barcos atracados em plena semana. Alguém poderia pensar que o chuvisco e o frio atrapalhavam os afazeres normais dos habitantes, mas só pensaria isso porque não conhece os descendentes alemães, principalmente depois de enfrentarem por séculos as piores condições que o planeta já designou aos homens.

Saindo-se do porto, é visível logo à extrema direita, um grande galpão com acesso à água, provavelmente usado para guardar os pescados dos dias mais fartos e para o concerto dos pesqueiros menores, mas que na data de hoje encontra-se fechado. Logo ao lado do galpão, uma construção rústica chama a atenção, e apesar do nome talhado em uma prancha de carvalho, “MittelBar”, apresenta um ar convidativo e acolhedor a qualquer transeunte. Porém, neste momento, encontra-se vazio e trancado. A rua principal chama-se “Fere Champenoise” que, enlameada, cruza toda a vila subindo o aclive entre fileiras de lojas e casebres simples. Talvez por causa da garoa, mas o fato é que somente os tons de cinza são visíveis por todo o lado. Se alguém com a pele cinza passeasse por ali poderia dizer que está em seu habitat. Mas o fato é que não há o mínimo sinal de vida ali. Nenhum movimento, nenhuma luz, nenhum rosto à janela. A rua termina na construção mais antiga ainda em pé, a igreja. Localizada no ponto mais alto do vilarejo, como que para abençoar todas as outras construções abaixo de si, resiste com suas pedras e madeiras de outras épocas, com uma torre simples, sem influências góticas ou clássicas, apenas uma estrutura reforçada para abrigar os fiéis das forças da natureza. É a única construção que apresenta luzes em seu interior. Há o som de um homem gritando.

- Silêncio a todos, por favor, silêncio!

Todos param de resmungar enquanto o homem de preto observa com os seus olhos, submersos em duas sobrancelhas espessas. Ele olha para a sua congregação, estão todos ali, afinal, o assunto a ser tratado naquela noite diz respeito a eles. Observa a disposição dos bancos da igreja, alterados para a ocasião, que formam um círculo com algumas cadeiras no centro. Nelas, estão presentes o prefeito, o delegado, o juiz, dois guardas e um caixão aberto. Dentro do caixão há o vulto de uma pessoa, impossível dizer se homem ou mulher, devido à quantidade de faixas enrolando o corpo. E o corpo se contorce levemente à medida que o padre continua seu discurso.

- Eu sei que todos estão preocupados, mas não podemos condenar alguém sem termos certeza de que é realmente culpada.

- Mas, padre – cortou a palavra o prefeito, um homem baixo e bigodudo – depois dos fatos relatados aqui, como a maldição lançada sobre os nossos pesqueiros, que não conseguem um único peixe há semanas, ou então essa chuva que não para mais, e até os animais que morrem misteriosamente. Eu aviso, padre, quando acabarem os animais, nós seremos os próximos.

Alguns dos presentes aplaudiram, outros cochicharam entre si fazendo sinais afirmativos ou negativos em suas caras preocupadas, o que levou o padre a exigir silêncio outra vez.

- Eu não nego nenhum dos fatos expostos, mas precisamos escutar a acusada para não tomarmos uma atitude precipitada. É só o que eu peço.

- Padre, com todo o respeito – levantou-se uma mulher sentada na terceira fila dos bancos – todos nós sabemos que ela sempre foi suspeita, desde que chegou na vila com o seu falecido marido, que Deus o tenha, e depois dele morrer isolou-se de tal forma que não se sabe como sobreviveu até agora.

- Ela é uma bruxa. E como não sabemos como funcionam as suas feitiçarias, se por palavra ou gesto ou até pelo olhar, seria arriscado deixarmos ela se manifestar – disse um velho – quem garante que ela não irá nos amaldiçoar mais?

- Isso mesmo – continuou o prefeito, entusiasmado pela intromissão dos dois – e há também a casa em que ela mora, afastada da cidade, bem no topo do Rochedo de Jó, que me dá nos nervos cada vez que passo por lá. Parece que estou sendo observado por uma presença maligna e que a qualquer momento alguém pode me empurrar para o precipício.

O padre sabia estar em uma batalha perdida, mas mesmo assim sentia-se como a última muralha entre a multidão enfurecida e o fim trágico daquela mulher. Resolveu utilizar o seu apelo mais forte.

- Estas são lendas criadas ao redor de uma pobre viúva. Todos não lembram como ela sempre foi tímida, mesmo quando acompanhava o marido à igreja? Ou que ele costumava dividir o pescado dele cada vez que um companheiro não tinha sucesso? É assim que querem honrar a memória de um dos seus? Gostariam que as suas esposas fossem acusadas de bruxaria depois que os senhores morressem?

- Ele era bom, ele é quem mantinha a bruxa presa – gritou uma mulher.

- Se ela continuar viva, não vai sobrar ninguém para lembrar-se do marido dela – falou um homem.

- Eu não vou aguentar mais essa situação – disse o delegado – não há mais como controlar a população, isto precisa ser resolvido agora ou então teremos uma histeria coletiva em nossa vila.

Neste instante, ouve-se o som de choro dentro da igreja. É um som abafado, porém capaz de ser ouvido por todos ali. Ao seguirem o som perceberam que vinha direto do caixão. A múmia contorcia-se de tanto chorar, e os guardas apontaram as suas armas para ela, com medo. Foi o suficiente para o padre dar um salto, correr pela igreja e jogar-se sobre o caixão.

- Deixem-na, eu assumo o risco de ouvir o que esta pobre tem a dizer, em seus últimos momentos de vida. Não quero carregar uma consciência pesada por não tê-la defendido enquanto eu pude.

E dizendo isso, desenrolou o rosto enfaixado no caixão. A aparência da mulher, que deveria ser bem mais nova do que aparentava, era como o de uma velha louca. Os cabelos sujos e desgrenhados, os dentes negros, os olhos saltados e com grandes veias vermelhas, e fez com que as mães tapassem os rostos dos filhos pequenos e os mais sensíveis desviassem o rosto. Parecia o rosto do próprio demônio.

- Padre, me perdoe, eu falhei – ela sussurrou no ouvido dele.

- Está perdoada, minha filha, mas me conte, em que você falhou?

- Eu tentei mantê-la afastada de todos, assim somente eu sofreria, mas não consegui. Eu falhei. E agora todos vão sofrer o mesmo tormento que eu sofri durante todos esses anos. Eu falhei, padre. Deixe que me matem, eu já não posso mais ajudar. Agora ela será responsabilidade de vocês.

- De quem você está falando?

- Da minha filha, padre. Da filha que concebi na noite após o falecimento de meu esposo. Ele veio até o meu quarto e eu pensei ser um sonho. Mas ela nasceu nove meses depois, diferente, má. Foi por causa dela que me isolei, padre. Ela é má... ela me tortura, padre, me tortura com dores que o senhor nem faz ideia que sejam possíveis suportar. E agora não há mais quem possa detê-la. A não ser que vocês façam o...

Enquanto ainda falava, o horror no rosto da mulher foi crescendo visivelmente, com seus olhos aumentando espantados enquanto o seu corpo começou a tremer nos braços do padre, que sentiu um frio percorrer a espinha. Foi quando uma voz infantil, porém monstruosa, falou diretamente dentro da mente dos presentes.

“Estou aqui, mamãezinha, para brincar com você pela última vez. Agora que achei outros para brincar comigo, você está livre para encontrar-se com papai. Adeus.”

Seguiu-se uma louca risada infantil, enquanto as lâmpadas da igreja se apagaram por completo. No silêncio mortal, todos os detalhes de repente se encaixaram, numa explosão de intuição.

Texto escrito para o Duelo de Escritores, com o tema "Ameaça" para 31/05/2010, e para o Once Upon a Time, 47º desafio, de 01/06/2010, com a frase "No silêncio mortal, todos os detalhes de repente se encaixaram, numa explosão de intuição."

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