Fado - Parte II

Esta é a continuação do conto Vingança ou justiça? Parte II publicado no blog Fênix Apoplética.

O Destino é mesmo um grande gozador. Apesar disso, enquanto uns dias são do caçador, outros continuam sendo da caça. Às vezes, o Destino é enganado pelos poucos que ousam desafiá-lo. Logo ele, onisciente do presente e do futuro, é obrigado a admitir que existem os que constroem seus próprios caminhos. Você também verá, bom leitor, que ao final deste conto, são tais pessoas que mostram ser mutável a rota traçada pelo Destino.

Laia sonhou que estava em um hospital. Havia vozes e risadas. Seu pescoço doía. Estava sozinha e tremia. Sabia que estavam atrás dela. Queriam lhe fazer mal e ela estava indefesa. As suas pernas não lhe obedeciam. Não conseguia fugir. Sentia como se estivesse dopada. Tremia de frio, de medo ou por causa de algum remédio. Sem ter como reagir, fechou os olhos e esperou. Até não estar mais sozinha no quarto.

Depois sonhou que o Diabo a carregava. O seu cavalo Diabo. Conseguia ver as patas, sentir a crina roçando-lhe o rosto, o cheiro selvagem de suor, o galope firme, mas não sabia quem a segurava sobre ele. Só percebia serem mãos fortes. O toque em seu corpo e a brisa em seus cabelos lembraram os carinhos do amado. Sentiu-se inexplicavelmente bem. Se ela estivesse morta, aquilo seria como cavalgar no céu.

Acordou com o som dos pássaros. Os sonhos eram agora murmúrios em sua mente. Sentia somente o doce som da manhã. Mas havia algo errado. Onde ela estava? Como foi parar naquela cama? Olhou espontaneamente para o lado. E o seu coração parou. A respiração parou. Os pensamentos pararam.

Em um canto, estava sentado o seu pior pesadelo. Ele a observava calado, aquele a quem ela amara duas vezes. Aquele de quem jurou vingar-se. Aquele a quem assassinara. E que depois deixou o gosto amargo da culpa e do arrependimento. Diante dela estava a imagem que refletia tudo o que lhe acontecera de pior e melhor nos últimos anos. Hector. Fernando. Hector. As pernas dela começaram a tremer.

Hector fatiava uma maçã pausadamente com a faca. Sem desviar os olhos dela. Ela, sem saber o que cortava mais, se o olhar ou a faca, passava de um para o outro. Percebeu que estavam sozinhos naquele pequeno cômodo. Havia uma cama, uma mesa, uma cadeira, uma porta e uma janela. E dois assassinos. Fraca e zonza como estava, Laia sabia que não seria páreo para Hector. Não alcançaria a porta nem a janela. Não sabe nem se conseguiria gritar por socorro, quanto mais se haveria alguém por ali para ajudá-la.

- Por que você o matou? – ele disse antes de levar a fatia à boca.

- Porque pensei que fosse você. – sussurrou com a voz trêmula.

- E o que você acha que eu vou fazer agora?

Era a pergunta que ela temia. Sabia que Hector já era perigoso sem precisar de motivos, quanto mais com eles. Ela falhara em matá-lo envenenado. Atingira o alvo errado, o gêmeo errado. Assassinara Fernando, o seu amor, Fernando... Aquilo era demais para Laia. Caiu de joelhos no chão, chorando.

- Faça comigo o que quiser. Não me importo mais. De que adianta viver e carregar o resto da minha vida o fardo por ter assassinado aquele que me amava? Aquele a quem eu amava. A dor por me lembrar dele é maior que o meu medo de você. Portanto, vá em frente, me mate! Termine logo o que você sempre planejou fazer.

Hector levantou-se e jogou o resto da maçã sobre a mesa. Caminhou lentamente até ela. Levantou a sua cabeça com uma das mãos enquanto segurava a faca com a outra. Uma eternidade se passou naquele instante. Era o fim.

Então, ele guardou a faca e ajoelhou-se diante de Laia. Com os olhos úmidos e as duas mãos segurando a face dela, disse:

- Eu te perdôo, meu amor, se você me perdoar.

- ?!?

O hálito de maçã entrou na boca e no cérebro de Laia enquanto ele a tomava em um beijo apaixonado. Como um raio, ela se lembrou qual dos dois irmãos gostava de maçãs.

- Fernando? É você? Mas como...

Fernando estava vivo, mais do que nunca. Contou a Laia que descobrira os planos de vingança dela contra o irmão, Hector. Tomado de paixão, não pôde deixá-la partir, mesmo que representasse perigo para ele. Resolveu enganá-la. Em seu plano perfeito, transformou o médico que cuidara dela em seu principal cúmplice. Foi o doutor quem trocou o conteúdo do frasco de veneno por um fortíssimo sonífero. Um ano depois, quando ela pensou tê-lo envenenado, foi o médico quem confirmou falsamente o óbito.

Após morrer, Fernando escondeu-se de todos, inclusive do irmão. Hector não compreenderia o seu amor por Laia. Fernando assistiu ao próprio velório à distância. Viu a reação do irmão no funeral. Fernando sabia que Hector tentaria matar Laia e ele não poderia deixar isso acontecer. Teria que escolher entre o irmão e a esposa. Como poucos sabiam da verdade – além o médico, os advogados da família - Fernando passou algumas posses para o nome de Laia e vendeu outras, juntando um bom dinheiro para recomeçarem juntos uma nova vida. Atuou discretamente, durante o tempo em que Laia estava no hospital. Solicitou aos advogados que orientassem Hector a não acusá-la na justiça, pois ele teria mais a perder caso ela revelasse todos os crimes que ele cometera.

Por fim, o médico ajudou Fernando a retirar Laia do hospital. Era preciso fazer isso antes que Hector fosse atrás dela.

Fernando chorava e a beijava. Laia beijava-o e soluçava. E foi, entre beijos e lágrimas no chão, que fizeram o melhor amor de suas vidas. Laia entregou-se por inteira. Fernando sorveu todo o mel que ela oferecia. Depois, exaustos mas felizes, adormeceram.

No dia seguinte, ambos estavam na plataforma aguardando o trem. Enquanto Fernando comprava os bilhetes Laia observava-o um pouco atrás. Um leve sorriso irônico refletido no vidro do guichê causou um arrepio em Laia. Ela tinha certeza de que ele era mesmo Fernando e não Hector? Afinal, tudo o que ela sabia sobre Fernando, Hector sabia mais. Hector poderia imitar o irmão tão perfeitamente quanto o irmão fizera antes. Se aquele homem fosse Hector, ela ainda estaria correndo perigo, pois ele estaria tramando uma vingança que diabolicamente destruiria primeiro os seus sonhos e esperanças e depois a sua vida. Por outro lado, e se fosse apenas paranóia da sua cabeça? Já tinha atentado contra a vida do homem errado e não queria sentir-se duas vezes culpada por fazer mal ao amado.

- O que foi, meu anjo? Por um instante, você me pareceu preocupada.

- Nada, meu amor, nada. – disse Laia, beijando-o suavemente, mas sem fechar os olhos.

Comentários

  1. Jeff, meu nobre autor,

    Quase perdi o fôlego. Li três vezes e a sensação só aumentou. Suspense de arrepiar.
    Trazer Diabo de volta foi uma das tantas pérolas neste desfecho.
    O conto fluiu vertiginosamente e você conseguiu aquela magia de escritores que prendem a atenção do leitor até o fim.
    Meu querido, parabéns! Você está pronto. E o merece pela dedicação, suas leituras ávidas, e a disciplina invejável ao construir um texto. Como eu disse no Fado I, sua personalidade e estilo são presentes, isso é a marca do escritor profissional.
    E quanto à elaboração de idéias, no mundo dos roteiros você vale ouro, pois são as idéias de uma mente fértil que constroem um belo filme. E as imagens passaram, cena-a-cena pela minha frente, outra característica de um bom roteirista, ou seja, escrever imagens, projetá-las para fora da escrita.
    Excelente Jeff, parabéns mesmo.
    O final é cult, todo ele ficou cult, filosoficamente um desfecho ambíguo, o que faz deste ensaio um trabalho contemporâneo. Notou que falo como fosse um filme? Porque minha mão tá coçando para roteirizar. Temos um filme aqui. E dos bons.
    Aliás, bons contos, bons filmes.
    Parabéns. Amei demais.
    Beijo Jeff.

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  2. Ah!... e obrigada por valorizar literariamente a idéia original que começou simples e despretensiosa. Valeuuuu! :)

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  3. Não resisti a comentar. Parabéns por essa continuação. Gostei muito de ler!
    Beijos

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