A dor que dói mais, de Martha Medeiros


Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade.

Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Dóem essas saudades todas.

Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o escritório e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.

Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua pintando o cabelo de vermelho. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango assado, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua surfando, se ela continua lhe amando.

Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.

Saudade é não querer saber se ele está com outra, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ela está feliz, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim, doer.
Martha Medeiros (1961) é escritora gaúcha. A dor que dói mais foi publicado originalmente em 20 de Julho de 1998 na extinta coluna assinada por ela no site "Almas Gêmeas". Circula desde então pela internet falsamente atribuído a Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor e Miguel Falabella.

Comentários

  1. Deixei um meme para você na postagem de hoje. Passa lá e confere.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  2. Tem bem o 'cheiro' da Martha, mas que bom que você divulga a autoria dela. A César o que for de César.
    E é lindo esse pensamento dela. Já conhecia mas foi muito bom ler de novo.
    beijo

    ResponderExcluir
  3. Isso me incomoda incessantemente :(

    ResponderExcluir
  4. Jefferson,
    que bom existir pessoas como você que se aprofunda, atribuindo aos textos seus devidos autores.
    Amo esse texto, foi muito bom relê-lo.
    Bjokas.
    Antonia Barros

    ResponderExcluir
  5. OLÁ BOA NOITE...GENTE ACHO ESSA MULHER MARAVILHOSA..LEIO TODAS AS POESIAS DELA E ACHO INVIVEL SEU MODO DE PENSAR E ESCREVER...
    ELA ESCREVE NÃO SÓ COM A ALMA MAIS TAMBEM COM O CORAÇÃO..
    E ESSE POEMA (A DOR QUE MAIS DÓI) É UM DOS MEUS PREDILETOS..
    GLAUCIA MELO..

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Isso aqui não é uma democracia. Portanto, escreva o que você quiser, mas eu publico somente os comentários que EU quiser.

Postagens mais visitadas deste blog

Expressões lá do Goiás (II): Cara lerda

Oração da Serenidade, de Reinhold Niebuhr

Destaques da 23ª semana de 2010