Como matar um bicho-papão - Parte V: FINAL
Leia também: Parte IV: O TRAUMA
A carta atingiu no alvo o ponto mais fraco de Andréa. Não foi um tapa na cara, foi um soco no nariz. Ela agora sangrava sem estar ferida. Andréa realmente tinha um segredo sujo em sua vida. Ela fazia sexo com Cairo, o seu pai, desde a adolescência. Nunca conhecera outro homem a não ser ele. Cairo não a deixara namorar ninguém. Sentia um ciúme louco até dos irmãos de Andréa. Ela, tentando esquecer o sentimento de culpa, plantou a ilusão em sua mente de que a sua vida, mesmo imperfeita, seguia os caminhos que Deus havia destinado a ela. Deus escreve certo por linhas tortas. Mais torta que a vida de Andréa, impossível. Então, se era para ela ser feliz como mulher do próprio pai, faria como nos tempos bíblicos, obedeceria resignada e lhe daria filhos. Contudo, quem não quis aceitar esta relação foi Alessandra, a mãe de Andréa. No dia em que pegou o marido e a filha transando na cama de casal, Alessandra pirou. Pegou uma faca e atacou Andréa. Era melhor uma filha morta do que uma filha amante do seu marido. Foi preciso chamar os vizinhos naquele dia para conter a fúria de Alessandra. Ou ela matava ou ela morria. O único jeito de calar Alessandra foi interná-la no hospício como doida varrida.
Mas os gritos e as maldições da mãe sobre a filha ainda ouvidos por Andréa sempre que o silêncio aparecia. Raiva de mãe é raiva divina. Andréa sentia só aumentar a dor, a vergonha e a depressão. Tanto que pensou várias e várias vezes em suicídio. Aquela carta simplesmente proclamava a sentença de uma condenação que Andréa cumpria faz tempo. Sem amigos nem parentes, a sua única alegria era dedicar-se integralmente ao pai-marido e aos dois filhos que tinha com ele. Mas era pouco. Aquilo não apaziguava o espírito de Andréa. Ela não vivia, definhava. Com o coração apertado, boca seca, pensamentos confusos, resolveu terminar de ler a carta que a trouxera de volta à dura realidade em que vivia.
"Filha, me perdoe por não te defender quando mais precisou de mim. Eu morreria mil vezes de novo por você, se pudesse. Mas não pude. O que posso fazer é te dizer que todo problema tem solução, mesmo que tardia. Só depende de você. Não agüente mais obedecer quem sempre te enganou e se aproveitou de você. Saiba que eu estou torcendo por você e aguardando o dia em que finalmente poderemos nos abraçar como pai e filha. Com amor, mais profundo que a morte, um beijo de teu pai, Jorge."
Um lampejo de esperança brilhou nos olhos de Andréa. Ela não era filha de Cairo. Ele abusara dela, se aproveitara de sua inocência infantil e a enganara todo o tempo, mas ela não era culpada. Os céus através daquela carta decidiram revelar que ela não era uma pecadora e não havia porque sentir-se suja. O seu verdadeiro pai se chamava Jorge e a amava como pai. Os seus olhos se encheram de lágrimas ao reler o trecho final da carta.
Neste instante, escutou o portão abrir-se. Olhou para o relógio: meio-dia. Andréa perdera toda a manhã lendo a carta e esquecera de fazer o almoço. Cairo iria ficar bravo, muito bravo. Mas era hora de Andréa dar um basta. Andou até o quarto. Ouviu a porta da cozinha abrir. Subiu na cama e pegou uma caixa de sapatos em cima do guarda-roupas. “Andréa, cadê meu almoço, trem?”, ouviu Cairo gritar da sala. Andréa sentou-se na cama e colocou as balas no tambor do revólver. Engatilhou no momento em que Cairo entrava no quarto. Ambos se olharam sabendo o que iria acontecer.
Na rua, dois garotos com uniformes escolares apostavam corrida até o portão para ver quem chegava primeiro quando ouviram o estampido vindo de dentro da casa.
[Continua: Parte VI: EPÍLOGO]
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