A Roda
De um lado, milhares de roupas brancas vestindo pessoas, cartazes gritando frases de efeito e indignação contra a surdez da corrupção e do descaso. Do outro, fardas cinzas e negras mal remuneradas, mal treinadas, mal-amadas, cumprindo ordens, aguardando o inevitável. No centro, lentes e flashes capturando e transmitindo em tempo real ações e reações excessivas. O momento é tênue. Um grupo, mas apenas um pequeno grupo – expressão que se repetiria à exaustão nas próximas semanas, locais e mídias – não aceita o não da parte contrária. A violência é moeda de troca; paga à vista e com juros acumulados. Começa a guerrilha. As linhas divisórias se confundem. Manifestantes atacam policiais. Policiais, repórteres. Repórteres, manifestantes. Manifestantes, repórteres. Repórteres, policiais. Policiais, manifestantes. Manifestantes, manifestantes.
A cena congela na imagem do policial hostilizando o cinegrafista.
Ninguém corre. Nada explode. Ninguém bate, apanha, luta, grita, ordena, chora, tosse, engasga. Barulho não ouve. Movimento não vê. Em um milionésimo de segundo que parece e na verdade é uma eternidade, duas mulheres atravessam a multidão despercebidas, tranquilas, entediadas.
- Tenho que admitir, minha cara, desta vez você me surpreendeu. Mídia e força policial estavam do meu lado, e seu spray de pimenta acabou de partir esse elo.
A outra não consegue disfarçar a satisfação ao ouvir a mais velha.
- Aprendi muito bem com você, irmã, que toda peça pode estar ao seu comando ou ao meu, e mesmo aquelas que você controla podem virar-se umas contra as outras.
- Mas não tenha dúvidas, a sua vitória é passageira, como sempre acontece.
- Admito que sim, mas as minhas vitórias formam as bases para a reformulação do seu discurso.
- E eu mudo mais uma vez de roupa. Cores novas, tecido novo, talvez até um modelito de vanguarda, porém sempre cobrindo o mesmo corpo.
- Amham. Mas, querida irmã, você já se perguntou qual de nós duas afinal está certa? Quem sairá vencedora depois de tantas eras?
- Nenhuma, minha cara. Ambas somos necessárias. Eu mantenho a ordem, o status quo, e asseguro o comodismo e as bases para a paz. Você traz o descontentamento daqueles que não gozam desta paz e almejam o lugar dos que a têm. Nós somos os raios que sustentam a eterna Roda de Samsara.
A caçula concorda silente. E, assim que Tradição e Revolução dobram a esquina, a cena descongela.
A cena congela na imagem do policial hostilizando o cinegrafista.
Ninguém corre. Nada explode. Ninguém bate, apanha, luta, grita, ordena, chora, tosse, engasga. Barulho não ouve. Movimento não vê. Em um milionésimo de segundo que parece e na verdade é uma eternidade, duas mulheres atravessam a multidão despercebidas, tranquilas, entediadas.
- Tenho que admitir, minha cara, desta vez você me surpreendeu. Mídia e força policial estavam do meu lado, e seu spray de pimenta acabou de partir esse elo.
A outra não consegue disfarçar a satisfação ao ouvir a mais velha.
- Aprendi muito bem com você, irmã, que toda peça pode estar ao seu comando ou ao meu, e mesmo aquelas que você controla podem virar-se umas contra as outras.
- Mas não tenha dúvidas, a sua vitória é passageira, como sempre acontece.
- Admito que sim, mas as minhas vitórias formam as bases para a reformulação do seu discurso.
- E eu mudo mais uma vez de roupa. Cores novas, tecido novo, talvez até um modelito de vanguarda, porém sempre cobrindo o mesmo corpo.
- Amham. Mas, querida irmã, você já se perguntou qual de nós duas afinal está certa? Quem sairá vencedora depois de tantas eras?
- Nenhuma, minha cara. Ambas somos necessárias. Eu mantenho a ordem, o status quo, e asseguro o comodismo e as bases para a paz. Você traz o descontentamento daqueles que não gozam desta paz e almejam o lugar dos que a têm. Nós somos os raios que sustentam a eterna Roda de Samsara.
A caçula concorda silente. E, assim que Tradição e Revolução dobram a esquina, a cena descongela.
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