O profeta das pequenas coisas
"There's so many different worlds
So many different suns
And we have just one world
But we live in different ones"
Andava o maltrapilho em seu próprio ritmo inconstante, porém determinado, a revirar algumas latas de lixo. A cidade corria frenética e mecânica ao seu redor, como uma máquina do tempo acelerada rumo a um futuro frenético e mecânico. Mas ele não. Ele não tinha pressa alguma. Cuidadoso, sagaz, metódico, apanhava alguns restos dos sacos plásticos meio abertos, olhava, revirava, cheirava e depois comia. Algumas vezes comia sem cheirar. Outras, cheirava sem olhar. Quase sempre olhava sem comer. E assim, sobre o lixo, sobre sacos, sobre restos, sobre vida vivia. Orbitava dentro daquele universo de resquícios da existência alheia fétidos como ele, descartados como ele e indesejáveis como ele. Esboçou um sorriso embaixo da barba espessa e desgrenhada quando pensou que o lixo e ele foram importantes para alguém um dia. Talvez hoje fossem notados somente por Deus e pelos lixeiros. Se achou esperto pelo raciocínio e o sorriso aumentou imperceptível mas significativamente.
Foi quando encontrou o livro. Pequeno, usado, cheirando a papel velho e enrolado em um pano mais velho ainda. Tinha a capa de couro com palavras escritas em dourado desgastado. Achou bonito. Abriu, folheou, procurou por figuras que ali não existiam. Letra miúda, vista cansada: este livro trará verdadeira felicidade a quem possuí-lo, é o que teria lido na dedicatória se soubesse ler. Guardou o livro como um achado precioso no bolso do casaco, e atravessando a rua lembrou que o Seu Antônio da padaria, um cara inteligentefina, talvez trocasse o livro por um pão com presunto e uma pinga. Se não valesse tanto, bastava a pinga. Esqueceu somente de olhar para o ônibus que o jogou violentamente contra o muro. Ali, caído enquanto morria, sentiu a boca adocicar com um gosto forte, divinal, que lembrava muito a cachaça.
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Uma síntese perfeita da divina comédia dos homens.Com poesia. O sabor da desgraça na metáfora precisa. Angustiantes momentos de indisciplinar ateísmo, ato corajoso que provavelmente só os famintos se obrigam a possuir.
ResponderExcluirPor fim, achei teu conto de uma profundidade assustadora porque, sem dúvida, acabei de ler um escritor dos bons.
Parabéns Jeff!
Beijos... vou querer autógrafo de seu livro.E dirás que és meu amigo.
beijo, querido. :)
EXERCÍCIO: Escrever um texto que deixe elementos no ar para a interpretação do leitor ao estilo Machado de Assis.
ResponderExcluirLi, gostei e comentei. Me amarrei no "inteligentefina".
ResponderExcluir.
Um abraço.