O Príncipe Maldito V

Leia também a Parte IV.
As montanhas próximas ao Vale Sombrio costumam ver muita gente esquisita passar por elas. Mas enquanto as montanhas gostam de fofocar sobre um ou outro viajante, debochando de roupas fora de moda ou cavalos ano/modelo ultrapassados, sobre alguns é melhor fingir que não viram e olhar para o outro lado para evitar problemas. Era exatamente este o caso quando quatro andarilhos viajavam por uma das muitas estradas que ali existem. Uma menina de cabelos dourados e vestido cor de rosa que saltitava colhendo algumas flores e soltando palavrões por causa disso. Ao lado dela, uma figura muito grande chacoalhava vários ossos presos em seu corpo. Se as montanhas não estivessem olhando para o céu brincando de descobrir se aquela nuvem mais parecia um macaco ou um ovo, teriam rido muito pois a coisa gorda parecia rolar a cada passo ao invés de andar. Logo atrás deles, dois homens de estatura similar, um vestido de espadachim (carregando espada, facas, pistolas e um baralho), com um chapéu de abas largas que lhe encobria o rosto, e outro, usando apenas um manto druida cinza-escuro e um cajado. Um grupo bem peculiar, mas com a fama capaz de fazer as montanhas tremerem de medo.

E pensar que apenas alguns dias antes, os nossos viajantes estavam juntos em uma taverna de muito má reputação, onde o homem do manto druida fez uma proposta de negócios aos Três Terríveis. Como ele fez isso não é de nosso conhecimento, já que o druida não falava nada. De alguma forma ele conseguiu comunicar os seus planos aos outros três: desejava chegar até as terras do norte, onde o frio e os perigos eram intensos, à procura de um objeto mágico capaz de responder a qualquer pergunta feita a ele. O druida disse que não queria o objeto para si, ele seria entregue aos três como pagamento se o guiassem até lá. Como o instrumento mágico já estava prometido a eles antecipadamente, só lhes pedia um favor: que o deixassem fazer a primeira pergunta. Os três porém, não atentaram como ele faria a pergunta sem abrir a boca, pois já estavam com as suas mentes voando longe pensando em que pergunta fariam. BB, a menina de cachos dourados, pensava que seria extremamente útil perguntar como reverter o feitiço que ela jogou em si mesma, vontando a ser uma bruxa adulta. Gordulfo, o grandão, perguntaria onde encontrar dragões azuis, o seu prato predileto que, por causa disso, até os dragões azuis existentes espalhavam a notícia de estarem extintos há anos. A imaginação do espadachim Carpeaux, tão manchada quanto a sua espada, reluziu quando o vislumbrou sobre montes de ouro e pedras preciosas. Cada um guardou para si os seus motivos e após uma breve confabulação, aceitaram em conjunto levar o druida até a terra dos gigantes, ao norte.

A distância era longa, mas os Três Terríveis já haviam passado algumas vezes pelo norte, seja correndo atrás de algum exército ou fugindo de outro. A vida de fora-da-lei é assim mesmo, é preciso estar sempre em movimento, sempre em novos esconderijos. Contudo, talvez você se pergunte porque eles precisavam do monge, já que, nitidamente cada um deles era mais poderoso e sabia o caminho. BB e Carpeaux também tiveram esta idéia, e aí é que entrou a garantia de vida do druida: ele não citou qual era o objeto mágico nem onde este se encontrava. Era uma lâmpada? Um espelho? Uma bola de cristal? Estava em uma caverna? Num castelo? Eles não sabiam, e a busca ficaria infinitamente mais difícil eles não sabendo o que nem onde procurar. Carpeaux sugeriu a BB torturarem o druida até ele falar, mas a idéia foi recusada quando lembraram que ele era mudo. Decidiram aceitá-lo no grupo até o momento mais oportuno.

Voltando à viagem, logo após uma curva na estrada, os quatro se depararam com um velho sentado em posição iogue em cima de uma pedra, completamente nu. Era bastante magro e estava de olhos fechados com os dois dedos das mãos em forma de círculo, em cima dos joelhos. O único adereço não natural em seu corpo era o desenho de um olho aberto em sua testa. E, apesar de estar nu, parecia vestido, pois a sua enorme barba branca cobria toda a frente do corpo. Ao se aproximar do velho, BB, usando a sua vozinha infantil mais fofinha, perguntou:

- Ó velho do olho na testa, diga-me quem tu és e porque estás aí peladão em cima desta pedra?

O velho continuou exatamente como estava. O grupo aguardou alguns instantes pela resposta, mas como nem mesmo parecia que o velho estava vivo, resolveram continuar a caminhada. Quando retomaram o andar, ouviram uma voz leve, mas com tom de sabedoria:

- Me preparo para a mais terrível das guerras.

Vendo que o velho não estava morto e que respondera a pergunta, todos voltaram a atenção novamente para ele.

- Que guerra é esta, que não ouvimos falar dela? – perguntou Carpeaux.

Novamente silêncio. Desta vez demoraram mais tempo parados como bobos na frente do velho, até parecer que ele não responderia. O grupo fez desistiu de esperar mais, ouviram o velho dizer:

- A guerra mais terrível é a contra mim mesmo. Se eu sair vencedor dela, será como ter vencido mil homens em mil batalhas.

O grupo comentou entre si que era uma boa resposta. Depois de algumas palavras trocadas, houve receio se mais alguém faria outra pergunta, até que Gordulfo, inocente, deixou escapar:

- Por que o senhor demora tanto para responder as nossas perguntas?

Todos sabiam que a resposta iria demorar, e como anoitecia e precisavam acampar, acenderam a fogueira próximo ao velho iogue, prepararam a refeição, comeram, contaram histórias de aventuras anteriores, beberam, dormiram e, no dia seguinte, ao se despedirem do velho, ouviram:

- Porque, na verdade, vocês não existem. São só frutos da minha imaginação criados para testar-me a paciência.

BB arriscou fazer um comentário despretensioso, sem esperar resposta, pois sabia que não teriam mais tempo para a aguardarem.

- Esta é a coisa mais idiota que já ouvi na vida. Como, em nome de Althus, nos ignorando, você vai vencer a sua guerra interior?

Ao darem as costas, para a surpresa geral, o velho disse:

- Porque tudo o que existe, tudo o que há a minha frente é uma criação mental. O mundo é mental. O real está obscuro e distante dos olhos. Ao ignorá-los, controlo vocês e assim controlo o mundo criado pela minha mente, não me sujeitando aos caprichos e armadilhas dela.

BB deu um pequeno sorriso e, chegando perto dos outros três, cochichou:

- Já percebi como fazer este velho falar. Façam exatamente o que eu fizer.

E perguntou:

- Se todos nós somos frutos da sua imaginação, então não poderíamos te machucar nem te matar, pois a imaginação não pode destruir a si mesma, certo?

Em seguida, fez sinal para todos fingirem que estavam indo embora. Bastou isto para ouvirem a resposta.

- A sua lógica é falha, senhorita. A minha mente é poderosa e pode tentar me convencer através das sensações físicas que alguém que não existe me machucou ou me matou. Mas, estou preparado para vencer tais ataques, pois se a minha mente me matar, ela mata a si mesma, e assim venço a batalha. Porém, se você quiser me provar que não é fruto da minha mente me matando, matará a ela também, e assim, venço a minha inimiga. De qualquer jeito, saio vitorioso.

- Mas se estamos dentro da sua cabeça, então por que não diz para onde estamos indo?

Novamente, fizeram menção de ir-se, só para ouvirem:

- Sei exatamente aonde vocês vão, por onde vão passar, que perigos encontrarão, quem irão vencer ou ser vencidos, se encontrarão o que procuram, assim como sei que, ao final da jornada, somente um de vocês voltará por este caminho.

Todos se olharam espantados. Mas não tiveram coragem de perguntar mais nada, pois cada um preferia acreditar que regressaria bem. Prosseguiram pela estrada, se afastando do velho de longas barbas brancas, sentado nu em cima da pedra, até sumirem da vista do olho pintado na testa dele.


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