Memórias de um mentiroso

Quando eu nasci, chorei sem apanhar. Por racismo, a minha avó não quis me ver, mas somente até me ver. Já tive bochechas rosadas e cabelo angelical, rosto inocente e olhar amedrontador. Eu já derrubei a bisa da escada. Já comi terra e massinha de janela. Cresci rodeado de flores, que me impregnaram com o seu perfume até hoje. Algumas eu colhi, outras eu pisei, ainda outras só admirei, porquanto elas sempre estiveram junto a mim.

Já fui raio de luz e anticristo. Já machuquei meus pais sem tocar neles. Já desembainhei e estoquei alguns com a minha língua. Já fui anêmico, canhoto, hepático, esquizofrênico, tímido, depressivo, revoltado. Já me indignei com burrice, preguiça, preconceito e falta de empatia alheios, sem perceber as minhas próprias. Já troquei festas pela televisão, namoradas por amigos, beijos por conselhos e sentimentos pela razão, e vice-versa. Já levei pedradas na cabeça e sangrei. Diferente ou semelhante às mulheres, já sangrei pelo nariz e pelo pênis. Já me queimei ao sol e virei vampiro. Já me transformei com a lua.

Eu já tive um melhor amigo de toda a minha vida diferente todo ano. Fui professor que se formou aluno. Já li todos os romances de Oscar Wilde. Já fui o companheiro certo nas horas erradas e achei um saco. Já fugi de casa por ter feito algo que só eu julgava errado. E voltei me achando um bobo. Já corri atrás de livros e mulheres e fugi de cobras e viados. Já mudei por causa disso. Já amei uma vez, mas fui amado muitas. Oxalá amar novamente mesmo que uma pequenita fração que amei ou me amaram. Já dormi com duas e três ao mesmo tempo. Já dei nove presentes iguais no dia dos namorados. Já fiquei dois anos sem beijar. Eu já me casei e enviuvei. Já vivi noventa e dois anos e achei pouco.

Eu já fui católico, evangélico, judeu, agnóstico. Depois filósofo, esoterista, hermeneuta, pragmático. Já morei no Paraguai e viajei até Roma. Já fui desenhista, poeta, ladrão, cdf, assassino, escritor, alien, mercenário, conselheiro sentimental e ombro amigo. Me formei em administração, psicologia, letras, teologia, computação e direito. Já bebi até ser outra pessoa, e ela nunca me contou o que eu fazia. Já fui abstêmio e careta. Já passei vergonha pela coisa errada e fui humilhado pela coisa certa. Já fui julgado, sentenciado, condenado e banido, talvez não nessa ordem.

Acreditei em coisas e pessoas que não acredito mais. Já fiz acreditarem - até a mim mesmo - naquilo que dizia. Já traí e fui traído mais vezes que gostaria. Já deixei de dizer eu te amo à pessoa certa. Mas não às erradas. Eu já fui a pessoa errada de alguém. Já tive uma filha que chama a outro de pai. Todavia, são os filhos que não tive que me (per)seguem. Já brinquei de capotar de carro e de voar da moto. Já viajei de avião, de catamarã e de alucinações. Já morri afogado. Já fui sapo rei e príncipe verde. Fiz sacanagem, sacaneei e fui sacaneado. Já fodi e fui fodido. Já conheci mulheres dos 13 aos 70. Já aprendi a amar e a desamar.

Eu já assisti o São Paulo jogar no Morumbi. Noivei em Foz do Iguaçú e em Florianópolis. Já me arrepiei com o barulho do Schumacher em Interlagos. Vi show de rock, samba, sertanejo, funk, pop, tudo de graça e odiei. Já abracei a Marjorie Estiano, não este ano. Já chorei com filme, livro, mulher e pecado. Já sorri com filme, livro, mulher e pecado. Já fiz chorarem por sadismo. De prazer. De alegria. Já gozaram com meu beijo, olhar, voz e palavras, separadamente. Já beberam veneno por minha causa e não deixaram nem um pouco pra mim. Já beijei mais de mil bocas, mas nunca a mesma boca mil vezes. Conheci a anatomia e a alma feminina melhor que as minhas. Já fui um cara mau, hoje sou apenas um cara mau que não faz maldades.

Apesar do que fiz ou penso que fiz, tudo não chega nem à metade da minha realidade e criatividade. Não é o fim nem o começo. É só aquilo que sempre vai estar na minha mente influenciando atitudes, amores, paixões. Tudo pode ser mentira para outros, mas não naquele Universo visto atrás dos meus olhos verdes.

Comentários

  1. Uma das coisas mais lindas que já tive notícia em ler...

    Meus parabéns, moço!

    Velocidade mais que Poe porque é atual e contemporaneo!

    Cada frase sacode o espírito, cada vírgula (sem necessidade) faz-nos respirar antes de morrermos.
    E depois, voltamos para a nova frase que nos desfalece de novo.
    Uma emoção difícil de sentir, uma sensação de primeiro mundo sem final.
    Vou ler sempre este post porque sei que a cada dia algo me será revelado.
    Tua velocidade calou-me.

    Parabéns! ^^

    Parabéns!

    Sou tua leitora e fã...

    Muito bom!!!!

    Voltarei aqui para falar mais...

    Ah!! A velocidade tem pausa, tem ritmo, tem sentimento.

    Beijo. (excelente!!!!)

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  2. Li pela terceira vez!

    Ainda estou estonteada!

    Excelente!!!!!

    Beijo! (uau!)

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  3. O escritor claramente sente-se em momento de liberdade plena para desabafar-se ao mundo. Como se quisesse esvaziar-se de suas experiências para um recomeço de experiências.
    O toque de ansiedade significa uma necessidade urgente de comungar com o próprio espírito. Um olhar mais atento e nota-se um humilde pedido de socorro, característica dos escritores solitários e angustiados, ou seja, os melhores. Desses que tem a sensibilidade à flor da pele mas não transmite aos outros gratuitamente. O interior é forte e ele precisa proteger-se de más críticas. Más interpretações de sua obra.
    Por isso concluo este texto classificando-o "desabafo". E, se não fugir à regra poética/literária, entra o escritor em nova fase. Basta saber se enveredará pelo rascante, pungente ou o lírico subjetivo. De qualquer forma é uma nova fase.
    Resta ao leitor aguardar as boas novas. Mas sem ansiedade. Nosso escritor está em franca metamorfose. Que bom!
    Daisy Carvalho

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  4. E também senti toques 'florais' de Allen Ginsberg que vem da fonte Willian Blake.
    Porém aqui, o texto é revisto pelo estilo do autor que traz forma e conteúdo para seu universo particular.
    E a leveza com que trata a própria sensualidade conota indubitavelmente a humildade do filósofo/poeta.
    E quando afirma não ser nem a metade de sua criatividade, informa com volúpia que deseja decolar sua literatura, decretando em forma de, como disse, desabafo que vai evoluir, expandir a criatividade e universo líricos, talvez neste estilo (próprio) de conduzir a estória com rara noção de começo, meio e fim. Deliberadamente rascante, sem perder a beleza de uma bela escrita. À isto chama-se Literatura Genuína.

    Aguardando novos textos. (Beijo)

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  5. "Acreditei em coisas e pessoas que não acredito mais. Já fiz acreditarem - até a mim mesmo - naquilo que dizia. Já traí e fui traído mais vezes que gostaria. Já deixei de dizer eu te amo à pessoa certa. Mas não às erradas. Eu já fui a pessoa errada de alguém. Já tive uma filha que chama a outro de pai. Todavia, são os filhos que não tive que me (per)seguem. Já brinquei de capotar de carro e de voar da moto. Já viajei de avião, de catamarã e de alucinações. Já morri afogado. Já fui sapo rei e príncipe verde. Fiz sacanagem, sacaneei e fui sacaneado. Já conheci mulheres dos 13 aos 70. Já aprendi a amar e a desamar."


    Aqui, neste trecho eu destaco a sóbria visão do autor que em síntese de si mesmo, informa que é hora de por para fora suas experiências, eis aí um grito quase alucinado que todo artista sensível é acometido em certa altura de sua vivência. Maturidade e reflexão estarão a partir de agora à serviço de sua arte.

    É clara a pergunta subjetiva nas entrelinhas: "O que farei agora?"

    Escrever, nobre, escrever ininterruptamente.

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  6. Se isso é algo tipo parte da experiência real do autor, eu digo, poxa, você tem uma vida corrida hein..... Já teve filha, deve ser são paulino e ferrarista, já teve trocentas crenças, e mulheres, machucou os pais da pior forma, sem toca-los... algumas coisas como alguém experiente eu aconselho, peça perdão aos que machucou, diga a sua filha quem é o pai, mantenha-se são paulino e ferrarista. E por último, escreva um livro e publique, você verá realmente do que é capaz.... A vida é curta, aproveite da melhor forma possível!

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