Omissão
Finalmente, estou de férias: tempo de estudar para as provas da pós-graduação na próxima segunda-feira, para a apresentação da monografia na sexta, para o exame da OAB e o concurso público do GDF em Brasília no começo do mês que vem, num total de 8 horas de vídeos online por dia (e de madrugada), responder às perguntas por telefone e MSN dos que não saíram de férias mas que poderiam ser respondidas com 5 segundos de reflexão própria, mandar as cobranças mensais para os meus clientes do meu bico extra online, baixar da internet os episódios semanais das poucas séries que acompanho (Bones, Criminal Minds, Dexter, House, Californication, Castle, Clandestinos, Lie to me, Mentalist, Misfits, Nikita, Pioneer One, The Big Bang Theory, The Event e No Ordinary Family) além de baixar os filmes em cartaz no cinema, só para assistir em casa antes para saber quais compensam ser vistos na telona (dica: vejam Cisne Negro), ler 50 páginas por dia como meta literária para 2011 (70 porque já comecei atrasado e não li nada dias 1 e 2), comentar no Clube de Leitura online sobre o porquê de Elizabeth Bennet ser hipócrita por criticar as atitudes de Mr. Darcy quando ela toma as mesmíssimas atitudes que ele, ler e revisar três contos que os amigos mandaram por email, ir no PROCON reclamar de problemas recentes com a GVT, DETRAN, consórcio e até do próprio PROCON, fazer uma resenha de livro para o curso de filosofia, além de malabarismos sociais entre amigos, companheiros, conhecidos, fãs e ex-namoradas que exigem presença para eventos, shows, jantares, chopes, sinucas, bate-papos, ou solicitam dicas de livro ou filme ou série atual ou antiga, ir em dois dentistas, um médico e se tudo continuar no ritmo que está em um psiquiatra até o fim do ano. Faltou algo? Escrever um texto com o tema mentira para o desafio literário online da semana.
Aí travei, e não sei por que, não pintou nenhuma ideia, embora eu conheça muito bem o tema. Afinal, sou um exímio mentiroso desde a infância. Tanto é que apanhei muito por isso. E digo que apanhei pouco pelo tanto que mentia. Por isso, enquanto não me vem nenhuma história que se encaixe no tema, vou contar um fato curioso que aconteceu essa semana comigo, quando assistia ao episódio piloto da série Pioneer One.
Contudo, antes de falar do fato curioso, terei de contar sobre a Carol. Ou melhor, sobre a Carol e sobre o avô dela.
A Carol foi uma garota com quem namorei cerca de dois anos atrás. Ela, a irmã e o irmão mais novos inauguravam a primeira geração nascida no Brasil de uma família imigrante da Rússia. Com toda a carga genética necessária para ser alta, loira e de lindos olhos verdes, mais a ginga brasileira, digamos que Carol tinha tudo para me conquistar na primeira mordida. É, ela tinha destas manias estranhas, adorava morder e adorava ser mordida. E foi ela quem me ensinou a beber vodca do jeito certo, a comer pierogi e a chamar os avós de babushka e dedushka. E fui eu quem a ensinou a gazear aula, a voltar de madrugada sem acordar ninguém em casa e que pequenas mentiras não machucam ninguém, principalmente se esse ninguém é um pai russo, gordo e vermelho, altamente inflamável. Nós adorávamos e discutíamos muito sobre literatura russa, ela defendendo Leão Tolstói e eu Fiódor Dostoiévski. Foi ela quem me apresentou Gogol e eu revelei a ela Blavatsky. Enfim, combinávamos até mesmo em nossos opostos literários.
Mas uma das coisas que mais marcaram o nosso namoro (além das mordidas dela, claro) foi a festa de aniversário do dedushka, o simpático Estanislau Pedreira. Ele falava pouco o português, e a Carol costumava traduzir tudo o que conversávamos. Acontece que a família dela tinha um segredo, que somente depois de muito tempo consegui conquistar a confiança necessária para compartilharam comigo. O seu Estanislau era foragido político da Rússia. E eu fiquei sabendo da história dele na festa de aniversário, quando todos os parentes e amigos o felicitavam repetindo a mesma frase, em russo. Vendo a minha cara de curioso para saber o significado daquilo, Carol revelou:
- Quer dizer, “Viva o nosso querido salvador do mundo”.
Lembro-me de ter feito uma piadinha se o avô dela era de alguma seita ou religião nova. Foi quando ela me contou que estávamos diante do homem que havia salvo o planeta da destruição, e que deveria me orgulhar disso pois eram poucos os homens capazes de fazer isso em nossos dias.
- Como assim?, perguntei deixando de lado o tom jocoso e começando a ficar curioso com aquelas homenagens.
- Durante a Guerra Fria, o meu avô era coronel na Rússia. Ele era o responsável por monitorar o sistema de satélites russos que avisariam no caso de algum ataque nuclear por parte dos Estados Unidos. Era um trabalho simples, mas de importância vital. Acontece que em uma noite, o alarme do radar soou. Todas as luzes vermelhas do painel começaram a piscar e a sirene a tocar. Foi quando o dedushka chegou perto do painel e viu que uma série de mísseis havia sido disparada pelos americanos contra a Rússia. Nessa situação, o treinamento dele orientava que deveria tomar uma só atitude: apertar o botão vermelho de contra-ataque, disparando mísseis nucleares russos contra a América. O meu avô sentou-se calmamente diante do botão, pensou na sua família, que naquela época eram ele, minha avó e os dois filhos, fez uma oração a Deus e resolveu não apertar o botão. Pensou que se os seus filhos queridos iriam morrer inocentemente por causa de genocidas, ele não queria assumir esse mesmo papel matando os filhos dos outros. Felizmente, duas horas depois descobriram que era apenas uma falha nos computadores e que não havia nenhum míssil americano lançado.
- Puxa, e quando foi isso? – perguntei.
- Em 1983. Foi nesse ano que meu avô evitou a Terceira Guerra Mundial e talvez a destruição de grande parte do mundo.
- Mas porque eu nunca ouvi falar disso?
- Porque o meu avô foi punido como um traidor. Foi interrogado pensando-se que era um espião norte-americano. Perdeu a patente e foi mandado para a Sibéria. Quando voltou, recebeu uma pensão miserável do Estado. E a história ficou abafada até que o regime soviético caiu. Mas quando isso aconteceu, ele e a família já tinham escapado para o Brasil.
- Puxa, que história, hein, Carol? Garanto que toda a sua família tem orgulho dele.
- Sim, é por isso que fazemos duas festas de aniversário para ele por ano, uma é para comemorar o dia em que ele tomou a decisão de salvar o mundo, mesmo que morresse ou que fosse punido por isso.
Depois deste dia, eu passei a puxar mais conversas com o seu Estanislau sobre a vida dele na Rússia, e ele enchia os olhos de lágrimas para contar as suas lembranças. Mas no fundo, sempre pensei que aquilo tudo era um pouco exagerado demais, que estavam superestimando o patriarca como uma forma de criar um ícone familiar. Porém, nunca toquei no assunto, em respeito à Carol.
Passou-se o tempo, o namoro acabou. Carol foi passar uma temporada na Rússia com uns parentes desconhecidos e acabou ficando por lá. Soube que estava atuando como amazona. Digamos que eu tenha dado umas aulinhas de montaria quando ela morava aqui. O curioso é que lembrei dela essa semana, pois no episódio da série Pioneer One foi citada a história do coronel russo Stanislav Petrov, exatamente igual a história que ouvi sobre o avô da Carol. Fui imediatamente na Wikipédia, e lá estava ela, a mesma história. Corri até a minha gaveta de papéis antigos, procurando pelos números dos telefones que eu tinha da Carol, para perguntar se o avô dela havia trocado de nome.
Liguei. Todos os números deram aviso de inexistentes.
Aí travei, e não sei por que, não pintou nenhuma ideia, embora eu conheça muito bem o tema. Afinal, sou um exímio mentiroso desde a infância. Tanto é que apanhei muito por isso. E digo que apanhei pouco pelo tanto que mentia. Por isso, enquanto não me vem nenhuma história que se encaixe no tema, vou contar um fato curioso que aconteceu essa semana comigo, quando assistia ao episódio piloto da série Pioneer One.
Contudo, antes de falar do fato curioso, terei de contar sobre a Carol. Ou melhor, sobre a Carol e sobre o avô dela.
A Carol foi uma garota com quem namorei cerca de dois anos atrás. Ela, a irmã e o irmão mais novos inauguravam a primeira geração nascida no Brasil de uma família imigrante da Rússia. Com toda a carga genética necessária para ser alta, loira e de lindos olhos verdes, mais a ginga brasileira, digamos que Carol tinha tudo para me conquistar na primeira mordida. É, ela tinha destas manias estranhas, adorava morder e adorava ser mordida. E foi ela quem me ensinou a beber vodca do jeito certo, a comer pierogi e a chamar os avós de babushka e dedushka. E fui eu quem a ensinou a gazear aula, a voltar de madrugada sem acordar ninguém em casa e que pequenas mentiras não machucam ninguém, principalmente se esse ninguém é um pai russo, gordo e vermelho, altamente inflamável. Nós adorávamos e discutíamos muito sobre literatura russa, ela defendendo Leão Tolstói e eu Fiódor Dostoiévski. Foi ela quem me apresentou Gogol e eu revelei a ela Blavatsky. Enfim, combinávamos até mesmo em nossos opostos literários.
Mas uma das coisas que mais marcaram o nosso namoro (além das mordidas dela, claro) foi a festa de aniversário do dedushka, o simpático Estanislau Pedreira. Ele falava pouco o português, e a Carol costumava traduzir tudo o que conversávamos. Acontece que a família dela tinha um segredo, que somente depois de muito tempo consegui conquistar a confiança necessária para compartilharam comigo. O seu Estanislau era foragido político da Rússia. E eu fiquei sabendo da história dele na festa de aniversário, quando todos os parentes e amigos o felicitavam repetindo a mesma frase, em russo. Vendo a minha cara de curioso para saber o significado daquilo, Carol revelou:
- Quer dizer, “Viva o nosso querido salvador do mundo”.
Lembro-me de ter feito uma piadinha se o avô dela era de alguma seita ou religião nova. Foi quando ela me contou que estávamos diante do homem que havia salvo o planeta da destruição, e que deveria me orgulhar disso pois eram poucos os homens capazes de fazer isso em nossos dias.
- Como assim?, perguntei deixando de lado o tom jocoso e começando a ficar curioso com aquelas homenagens.
- Durante a Guerra Fria, o meu avô era coronel na Rússia. Ele era o responsável por monitorar o sistema de satélites russos que avisariam no caso de algum ataque nuclear por parte dos Estados Unidos. Era um trabalho simples, mas de importância vital. Acontece que em uma noite, o alarme do radar soou. Todas as luzes vermelhas do painel começaram a piscar e a sirene a tocar. Foi quando o dedushka chegou perto do painel e viu que uma série de mísseis havia sido disparada pelos americanos contra a Rússia. Nessa situação, o treinamento dele orientava que deveria tomar uma só atitude: apertar o botão vermelho de contra-ataque, disparando mísseis nucleares russos contra a América. O meu avô sentou-se calmamente diante do botão, pensou na sua família, que naquela época eram ele, minha avó e os dois filhos, fez uma oração a Deus e resolveu não apertar o botão. Pensou que se os seus filhos queridos iriam morrer inocentemente por causa de genocidas, ele não queria assumir esse mesmo papel matando os filhos dos outros. Felizmente, duas horas depois descobriram que era apenas uma falha nos computadores e que não havia nenhum míssil americano lançado.
- Puxa, e quando foi isso? – perguntei.
- Em 1983. Foi nesse ano que meu avô evitou a Terceira Guerra Mundial e talvez a destruição de grande parte do mundo.
- Mas porque eu nunca ouvi falar disso?
- Porque o meu avô foi punido como um traidor. Foi interrogado pensando-se que era um espião norte-americano. Perdeu a patente e foi mandado para a Sibéria. Quando voltou, recebeu uma pensão miserável do Estado. E a história ficou abafada até que o regime soviético caiu. Mas quando isso aconteceu, ele e a família já tinham escapado para o Brasil.
- Puxa, que história, hein, Carol? Garanto que toda a sua família tem orgulho dele.
- Sim, é por isso que fazemos duas festas de aniversário para ele por ano, uma é para comemorar o dia em que ele tomou a decisão de salvar o mundo, mesmo que morresse ou que fosse punido por isso.
Depois deste dia, eu passei a puxar mais conversas com o seu Estanislau sobre a vida dele na Rússia, e ele enchia os olhos de lágrimas para contar as suas lembranças. Mas no fundo, sempre pensei que aquilo tudo era um pouco exagerado demais, que estavam superestimando o patriarca como uma forma de criar um ícone familiar. Porém, nunca toquei no assunto, em respeito à Carol.
Passou-se o tempo, o namoro acabou. Carol foi passar uma temporada na Rússia com uns parentes desconhecidos e acabou ficando por lá. Soube que estava atuando como amazona. Digamos que eu tenha dado umas aulinhas de montaria quando ela morava aqui. O curioso é que lembrei dela essa semana, pois no episódio da série Pioneer One foi citada a história do coronel russo Stanislav Petrov, exatamente igual a história que ouvi sobre o avô da Carol. Fui imediatamente na Wikipédia, e lá estava ela, a mesma história. Corri até a minha gaveta de papéis antigos, procurando pelos números dos telefones que eu tinha da Carol, para perguntar se o avô dela havia trocado de nome.
Liguei. Todos os números deram aviso de inexistentes.
Texto-desafio proposto no Duelo de Escritores com o tema 'mentira'.
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