A Estrela do Jordão Órgão dos Anjos, da Côrte de Santa Dica

Perto da venda, na beira da estrada empoeirada, debaixo de uma gameleira o velho observava os meninos chutarem uma velha bola de couro tentando marcar gols entre as traves de um colchete aberto. Era uma correria só e apesar do calor seco de agosto os meninos não paravam. Foi assim a tarde toda, pois era sábado e não tinham aula, até que o dono da bola montou em sua bicicleta e se foi embora, faceiro por ter marcado quatro gols. Sem a bola de couro no chão e com a bola de fogo no céu indo embora também, Bento, o último dos peladeiros, aproximou-se e sentou em frente ao velho. Observou calado este enrolando o fumo grosso na palha fina com cuidado até a perfeição para depois acender com um palito de fósforo o cigarro manualmente produzido. O cheiro forte entrou nas narinas de Bento quando o velho deu a primeira baforada e olhou para ele. Não era preciso dizer palavra, ambos sabiam que havia chegado a hora.

- Qual causo o sinhô vai contá hoje, vô?

- Quar ocê quer que eu conte: o do romãozinho, o do negro d’água ou o do pé-de-garrafa?

- Essas não vô, conta uma diferente. Uma de verdade.

- Todas elas são verdade, meu fii. – respondeu o velho antes de dar outra baforada.

- Tá, mas conta uma história que alguém daqui viu e não uma que contaram que outro contou que outro contou e não dá pra saber donde veio.

O velho enfiou a mão no bolso e tirou a boceta onde guardava o fumo. Em um compartimento à parte, pegou um caroço de milho e mostrou à frente dos olhos do garoto.

- Tudo bom então vô contá a história desse caroço de milho que trago comigo faz muito tempo e de como ele prova um milagre que eu vi acontecer.

- Mesmo?

- Sim, com estes olhos que a terra há de comer. Você já ouviu a história da santa guerreira?

- O senhor fala da Santa Dica? Só escutei a professora falando que ela era muito conhecida antigamente. Ela era santa mesmo, vô? Você conheceu ela?

- Ê, meu fii, seu avô fez bem mais que conhecer a Benedita, o seu avô foi o principal capataz dela na época em que gente do Brasil todo vinha em romaria pedir milagre dela. Era um mundão de gente que não acabava mais. Todos tinham ficado sabendo da menina que voltou dos mortos depois de três dias, igual o Nosso Senhor. Eu era um mulecote como ôce naquela época mas lembro ainda de tudo. Chegava gente doente e saía gente curada. O pai da Dica era cumpadre do meu pai, que prometeu que eu ajudaria a cuidar dela quando ela ficou mocinha. E eu aceitei, senão seria só pegar na enxada o tempo todo. Assim, eu mudei pra casa da Dica ainda novo, assim como muita gente que chegava e ficava por estas bandas. Tudo ia bem até os coroner começar a ter ciúmes da Santa, Bento. Ela tinha umas ideias boas até, dizia que a terra é de Deus e que deveria ser de todos e queria criar, mas que os chefão daquela época não gostava nem um pouco. Os padre também não gostava quando ela fazia milagres, rezava as missa e conversava com os espírito do Doutor Fritz, da Princesa Silveira e do Comandante. Diziam que ela tava endemoniada. Não demorou muito tempo pro Governador mandar as tropas prenderem a Santa e acabarem com o movimento que eles chamavam de insurreição contra a República.

- E o que aconteceu, vô, eles mataram a Santa?

- Mas o quê, meninu! A Santa não podia ser matada não. Eu mesmo vi com esses olhos quando o pelotão todo disparou contra a casa da Dica, as balas que acertavam ela, enrolavam nos seus cabelos compridos e rolavam por ela até chegarem ao chão. E ela sorria naquela noite como se o próprio Pai estivesse segurando a sua mão. Mesmo assim, as balas acertaram três dos nossos. Quando ela viu que não conseguia proteger todo mundo dos soldados, mandou o povo todo atravessar o Rio do Peixe, que passava atrás da casa dela. Depois, pegou uma sucuri enorme e amarrou no banhado perto do rio pros soldados não atravessassem o rio tamém. Os soldados ficaram bestas vendo aquilo e não teve um com coragem de pisar no banhado. E ficaram mais bobos ainda quando viram ela atravessando o rio andando em cima das águas, igualzim Nosso Senhor fez.

- Então todo mundo escapou dos sordado?

- Infelizmente não, tinha outro tanto do outro lado do rio só esperando a gente chegá. A Dica foi presa, mas não durou muito tempo na cadeia porque o povo quis ela solta.

- E aí acaba a história, vô?

- Acaba não, meu fii, ainda tem as guerra que a gente lutou pra Santa em Sumpaulo e em Minas, contra a Revolução de 32, depois contra a Coluna Prestes. Eu era um dos soldados da Santinha que o povo chamava de “pé com palha e pé sem palha”. Graças as bênçãos dela nenhum homem que lutava por ela morreu. A gente atravessava ponte cheia de mina, de olhos vendados e nada acontecia. Quando as balas dos inimigos batiam na gente, advinha no que elas viravam?

O menino arregalou os olhos enquanto olhava para aquilo que o velho ainda segurava na mão.

Desafio de escrita proposto no Duelo de Escritores de 01.09.2010 com o tema "folclore brasileiro".

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