Sublimação
O movimento no pequeno café na esquina revelava que mais um dia de trabalho estava começando. Manhã de quinta-feira. Dos clientes que por ali passavam apressados, destoava a imagem semi-estática de três mulheres sentadas na mesma mesa, alheias ao mundo ao redor. Os seus movimentos eram lentos, quase premeditados. Os olhares pouco se cruzavam, mas mesmo assim diziam muito, como em um encontro de telepatas ou de velhas conhecidas. Alguém que não tivesse atrasado para o serviço e pudesse observá-las por um tempo poderia afirmar que não, elas não faziam parte da decoração.
A primeira mulher, loira, com cerca de trinta e cinco anos, mas que a maquiagem carregada fazia parecer mais nova, usava um sobretudo bege e um lenço de seda no pescoço que lembrava uma onça pintada que não destoavam do leve frio matinal. Era a mais velha das três, embora a sua postura a habilitasse a competir de igual com as outras duas. A quantidade de jóias que usava faria qualquer um pensar que era rica. Olhava para a xícara enquanto mexia com uma das mãos uma colherzinha. Chá de camomila com mel. Uma volta para cá. O mesmo que ele bebera com ela na primeira manhã que acordaram juntos. Uma volta para lá. Foi naquele dia que ela voltou a acreditar em príncipes encantados. Ele a fizera acreditar que ela ainda poderia ser sexy e fazer um homem mais novo interessar-se por ela. Depois de cinco anos casada com um jogador de futebol violento dentro e fora de campo, dentro e fora do quarto – e que agora era violento na cadeia depois de matar uma das amantes – e do divórcio amargo passando pelo papel público de esposa traída, só conseguia sentir que gastara à toa os últimos anos de sua vida tentando consertar o que não havia conserto. Um vazio no coração só se cura com um novo amor, foram as palavras dele ao notá-la sozinha no bar do restaurante. Não fazia o tipo galã, mas algo nele a assanhava. E o canalha era bom de papo, falou exatamente o que ela não só queria mas ansiava, precisava ouvir. Praticamente um psicólogo. Do primeiro drinque à primeira noite juntos foi questão de minutos. O sexo que ela experimentara antes nunca fora tão bom. Transformara-se em uma personagem de Sabrina nos momentos mais picantes e, diferente da brutalidade do leito conjugal, ele passava horas acariciando o seu corpo nu, fazendo-a arrepiar-se de tesão. Descobriu que gostava de foder, que era capaz de ter orgasmos múltiplos e que transar em locais públicos a excitava. Ele era perfeito demais para ser verdade. No começo ela desconfiava, mas se maravilhava ao contar tudo o que ele fazia com ela para as amigas. Todas queriam conhecê-lo e quando o conheciam morriam de inveja. Ela só não entendia quando ele pedia para que não se apaixonasse. Mas foi inevitável. Assim como foi inevitável perceber, quando ele a deixou, que levou junto grande parte do seu dinheiro. Talvez tenha se impressionado pelo seu estereótipo de homem ideal, o cavalheiro safado, e esqueceu que se tornara vulnerável para ser desfrutada. Ele a fodera da melhor e pior formas possíveis. Agora, com o chá frio na xícara, pensava como viveria sem ele.
A segunda mulher, morena de dezenove anos cujos olhos azuis destacavam-se devido os longos cabelos lisos e negros, vestia uma jaqueta de couro e uma camiseta de alguma banda de rock alternativo. Olhava pela janela o sol matutino ainda fraco lá fora. Alguns cachorros perseguindo animados uma cadelinha lembraram alguém a currando com violência. Sempre tivera curiosidade em sadomasoquismo, mas dera o azar de namorar somente caras conservadores na hora do sexo. A beleza costuma atrapalhar quando uma mulher quer ser tratada como uma vadia. Ele foi o primeiro não só a notar este desejo, mas a satisfazê-lo por completo. E pensar que no perfil do Orkut nem revelava muita coisa, nem mesmo a foto, pois queria alguém que não se interessasse só pela aparência. Ele a convenceu a se encontrarem para um chope com a mesma rapidez que a ensinou a suportar toda dor e humilhação que lhe causava durante o sexo. Sentia imenso prazer com as surras que ele lhe dava, assim como o saco de pancadas sente com o boxeador. Atingiu o orgasmo pela primeira de várias vezes com ele a torturando. Quando ele falava “só não vá se apaixonar” ela replicava um “você também”, embora sabia ser inexperiente no assunto. Foi com ele que fugiu da casa dos pais para Arraial D’Ajuda. E foi lá que ele a abandonou, sangrando e gozando, amarrada, sozinha e sem dinheiro em um quarto de motel barato. Não se importou em sair na página policial do jornal sensacionalista local pois voltou para casa assim que o pai lhe mandou o dinheiro da passagem. Não prestou queixa na polícia porque… o pensamento que viria a seguir foi cortado pelo ônibus passando em alta velocidade, pensamento que provavelmente admitiria aqueles terem sido os melhores dias da sua vida. Ao olhar para as outras na mesa, perguntou-se se ele as teria completado da forma que a completara.
A terceira mulher, olhava cabisbaixa para as mãos, que suavam. Mais nova que a primeira e mais velha que a segunda, também era morena, mas diferente da outra, poderia até ser considerada mulata se a miscigenação racial no país não fosse tanta ao ponto não haver nomenclatura para os descendentes dos miscigenados dos miscigenados dos miscigenados. Mantinha como características da mãe a vasta cabeleira negra de pequenos caracóis suspensos no ar, os lábios carnudos que soube desde menina serem bons de beijar, os seios e traseiro voluptuosos capazes de fazer operários, motoristas e pais de família sentirem uma abrupta vontade de assoviar. Do pai herdara o senso de humor e a tez clara. A combinação exótica facilitou com que começasse a namorar cedo. Tanto que se casou com o segundo namorado, o amigo da época do colégio, pertencente à mesma igreja do bairro. Julgava-se feliz até atender aquele homem no trabalho. Quero aquele par de brincos, por favor. E depois de pagá-los, presenteou-a com eles. Apesar de todo o recato de mulher casada e temente a Deus e da honestidade familiar que a instigaram a recusar, como de fato o fez, ele a convenceu que não queria mais do que deixar uma bela moça feliz. Deixou-lhe o seu cartão em troca de um sorriso, dizendo que gostaria de tirar algumas fotos profissionais dela, embora no cartão aparecesse a palavra advogado. Ela e o marido trabalhavam duro e o dinheiro era pouco. O casamento nunca entrara em crise e ela refletiu que um dinheiro extra poderia diminuir algumas contas atrasadas da porta da geladeira. Os brincos ela não venderia, afinal não se faz isso com presentes, mesmo de desconhecidos, principalmente se forem tão belos. Apresentou-se no apartamento indicado no horário marcado e deparou-se com um homem charmoso que lhe ofereceu champanhe. Para não fazer feio, aceitou embora fosse fraca para a bebida. Ele lhe dizia frases espirituosas e a deixou relaxada. Um fogo abrasador nunca antes sentido acendeu-a por dentro, e não se impôs quando ele pulou sobre ela, caçador atacando a caça, rasgando as suas roupas, puxando cabelos, arranhando as costas e fazendo-a gritar ao mesmo tempo em que gozava em sua boca. Entre gemidos, pernas tremendo e pele suada, confessou que, perdera a virgindade, ao menos algum tipo de virgindade, ali, naquele carpete de apartamento. Largue o seu marido e fique comigo, mas só ficar, sem compromisso de paixão ou amor. Foi o que ela fez. Ou tentou fazer. O melhor amigo, aos soluços, entendeu. Quero te ver feliz, mesmo que com outro. E feliz ela foi, por longos e prazerosos dois meses. Até ele a trocar por outra. Sentiu-se um lixo, depois sentiu raiva de si mesma, depois sentiu raiva dele. Ele a usou, abusou e jogou fora. Resolveu segui-lo e ver por quem havia sido trocada. Mas a grande surpresa foi ver a outra também ser abandonada depois de um tempo. E a outra. E a próxima.
As três dirigiram os olhares para a porta quando o homem por quem esperavam entrou. Ele estava sozinho e, de certa forma, sentiu-se desconfortável ao se aproximar. Era a primeira vez que falaria com as três juntas. Mas era preciso. Sentiu um certo orgulho ao perceber que as três lançavam olhares rancorosos em sua direção. Elas sabiam que ele era mau, muito mau, e ele se divertia com isso. Aproximou-se, educadamente pediu licença e sentou ao lado da loira.
- Muito bom dia, senhoras. O serviço está feito, o corpo não será encontrado. Espero que tenham trazido o meu dinheiro.
A primeira mulher, loira, com cerca de trinta e cinco anos, mas que a maquiagem carregada fazia parecer mais nova, usava um sobretudo bege e um lenço de seda no pescoço que lembrava uma onça pintada que não destoavam do leve frio matinal. Era a mais velha das três, embora a sua postura a habilitasse a competir de igual com as outras duas. A quantidade de jóias que usava faria qualquer um pensar que era rica. Olhava para a xícara enquanto mexia com uma das mãos uma colherzinha. Chá de camomila com mel. Uma volta para cá. O mesmo que ele bebera com ela na primeira manhã que acordaram juntos. Uma volta para lá. Foi naquele dia que ela voltou a acreditar em príncipes encantados. Ele a fizera acreditar que ela ainda poderia ser sexy e fazer um homem mais novo interessar-se por ela. Depois de cinco anos casada com um jogador de futebol violento dentro e fora de campo, dentro e fora do quarto – e que agora era violento na cadeia depois de matar uma das amantes – e do divórcio amargo passando pelo papel público de esposa traída, só conseguia sentir que gastara à toa os últimos anos de sua vida tentando consertar o que não havia conserto. Um vazio no coração só se cura com um novo amor, foram as palavras dele ao notá-la sozinha no bar do restaurante. Não fazia o tipo galã, mas algo nele a assanhava. E o canalha era bom de papo, falou exatamente o que ela não só queria mas ansiava, precisava ouvir. Praticamente um psicólogo. Do primeiro drinque à primeira noite juntos foi questão de minutos. O sexo que ela experimentara antes nunca fora tão bom. Transformara-se em uma personagem de Sabrina nos momentos mais picantes e, diferente da brutalidade do leito conjugal, ele passava horas acariciando o seu corpo nu, fazendo-a arrepiar-se de tesão. Descobriu que gostava de foder, que era capaz de ter orgasmos múltiplos e que transar em locais públicos a excitava. Ele era perfeito demais para ser verdade. No começo ela desconfiava, mas se maravilhava ao contar tudo o que ele fazia com ela para as amigas. Todas queriam conhecê-lo e quando o conheciam morriam de inveja. Ela só não entendia quando ele pedia para que não se apaixonasse. Mas foi inevitável. Assim como foi inevitável perceber, quando ele a deixou, que levou junto grande parte do seu dinheiro. Talvez tenha se impressionado pelo seu estereótipo de homem ideal, o cavalheiro safado, e esqueceu que se tornara vulnerável para ser desfrutada. Ele a fodera da melhor e pior formas possíveis. Agora, com o chá frio na xícara, pensava como viveria sem ele.
A segunda mulher, morena de dezenove anos cujos olhos azuis destacavam-se devido os longos cabelos lisos e negros, vestia uma jaqueta de couro e uma camiseta de alguma banda de rock alternativo. Olhava pela janela o sol matutino ainda fraco lá fora. Alguns cachorros perseguindo animados uma cadelinha lembraram alguém a currando com violência. Sempre tivera curiosidade em sadomasoquismo, mas dera o azar de namorar somente caras conservadores na hora do sexo. A beleza costuma atrapalhar quando uma mulher quer ser tratada como uma vadia. Ele foi o primeiro não só a notar este desejo, mas a satisfazê-lo por completo. E pensar que no perfil do Orkut nem revelava muita coisa, nem mesmo a foto, pois queria alguém que não se interessasse só pela aparência. Ele a convenceu a se encontrarem para um chope com a mesma rapidez que a ensinou a suportar toda dor e humilhação que lhe causava durante o sexo. Sentia imenso prazer com as surras que ele lhe dava, assim como o saco de pancadas sente com o boxeador. Atingiu o orgasmo pela primeira de várias vezes com ele a torturando. Quando ele falava “só não vá se apaixonar” ela replicava um “você também”, embora sabia ser inexperiente no assunto. Foi com ele que fugiu da casa dos pais para Arraial D’Ajuda. E foi lá que ele a abandonou, sangrando e gozando, amarrada, sozinha e sem dinheiro em um quarto de motel barato. Não se importou em sair na página policial do jornal sensacionalista local pois voltou para casa assim que o pai lhe mandou o dinheiro da passagem. Não prestou queixa na polícia porque… o pensamento que viria a seguir foi cortado pelo ônibus passando em alta velocidade, pensamento que provavelmente admitiria aqueles terem sido os melhores dias da sua vida. Ao olhar para as outras na mesa, perguntou-se se ele as teria completado da forma que a completara.
A terceira mulher, olhava cabisbaixa para as mãos, que suavam. Mais nova que a primeira e mais velha que a segunda, também era morena, mas diferente da outra, poderia até ser considerada mulata se a miscigenação racial no país não fosse tanta ao ponto não haver nomenclatura para os descendentes dos miscigenados dos miscigenados dos miscigenados. Mantinha como características da mãe a vasta cabeleira negra de pequenos caracóis suspensos no ar, os lábios carnudos que soube desde menina serem bons de beijar, os seios e traseiro voluptuosos capazes de fazer operários, motoristas e pais de família sentirem uma abrupta vontade de assoviar. Do pai herdara o senso de humor e a tez clara. A combinação exótica facilitou com que começasse a namorar cedo. Tanto que se casou com o segundo namorado, o amigo da época do colégio, pertencente à mesma igreja do bairro. Julgava-se feliz até atender aquele homem no trabalho. Quero aquele par de brincos, por favor. E depois de pagá-los, presenteou-a com eles. Apesar de todo o recato de mulher casada e temente a Deus e da honestidade familiar que a instigaram a recusar, como de fato o fez, ele a convenceu que não queria mais do que deixar uma bela moça feliz. Deixou-lhe o seu cartão em troca de um sorriso, dizendo que gostaria de tirar algumas fotos profissionais dela, embora no cartão aparecesse a palavra advogado. Ela e o marido trabalhavam duro e o dinheiro era pouco. O casamento nunca entrara em crise e ela refletiu que um dinheiro extra poderia diminuir algumas contas atrasadas da porta da geladeira. Os brincos ela não venderia, afinal não se faz isso com presentes, mesmo de desconhecidos, principalmente se forem tão belos. Apresentou-se no apartamento indicado no horário marcado e deparou-se com um homem charmoso que lhe ofereceu champanhe. Para não fazer feio, aceitou embora fosse fraca para a bebida. Ele lhe dizia frases espirituosas e a deixou relaxada. Um fogo abrasador nunca antes sentido acendeu-a por dentro, e não se impôs quando ele pulou sobre ela, caçador atacando a caça, rasgando as suas roupas, puxando cabelos, arranhando as costas e fazendo-a gritar ao mesmo tempo em que gozava em sua boca. Entre gemidos, pernas tremendo e pele suada, confessou que, perdera a virgindade, ao menos algum tipo de virgindade, ali, naquele carpete de apartamento. Largue o seu marido e fique comigo, mas só ficar, sem compromisso de paixão ou amor. Foi o que ela fez. Ou tentou fazer. O melhor amigo, aos soluços, entendeu. Quero te ver feliz, mesmo que com outro. E feliz ela foi, por longos e prazerosos dois meses. Até ele a trocar por outra. Sentiu-se um lixo, depois sentiu raiva de si mesma, depois sentiu raiva dele. Ele a usou, abusou e jogou fora. Resolveu segui-lo e ver por quem havia sido trocada. Mas a grande surpresa foi ver a outra também ser abandonada depois de um tempo. E a outra. E a próxima.
As três dirigiram os olhares para a porta quando o homem por quem esperavam entrou. Ele estava sozinho e, de certa forma, sentiu-se desconfortável ao se aproximar. Era a primeira vez que falaria com as três juntas. Mas era preciso. Sentiu um certo orgulho ao perceber que as três lançavam olhares rancorosos em sua direção. Elas sabiam que ele era mau, muito mau, e ele se divertia com isso. Aproximou-se, educadamente pediu licença e sentou ao lado da loira.
- Muito bom dia, senhoras. O serviço está feito, o corpo não será encontrado. Espero que tenham trazido o meu dinheiro.
Desafio de escrita proposto no Duelo de Escritores de 21.07.2010, com o tema anti-herói.
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