O Bigode, de Emmanuel Carrère
"O mais inteligente é quem pára primeiro." (pg. 30)
Existem um filme e um livro com o título O Bigode. O roteiro e direção do filme são do escritor do livro: Emmanuel Carrère, um jornalista e historiador francês - de 40 e poucos anos - que escreveu meia dúzia de livros e já está sendo considerado o substituto do checo Franz Kafka – autor de A Metamorfose e O Processo –, um escritor que influenciou fortemente a literatura moderna. Kafka tinha a capacidade de deixar o leitor com a impressão de estar dentro de um sonho, ou melhor, de um pesadelo, mostrando aspectos primitivos da psiquê humana em situações fantásticas. E Carrère escreve, roteiriza e dirige como um legítimo herdeiro de Kafka.
No filme O Bigode (La Moustache – França, 2005) o telespectador se vê frente a frente com um dos maiores problemas existenciais da humanidade: a história de Marc, um cara que raspa o bigode. Ok, talvez este não seja lá um grande problema existencial da humanidade. Não seria, se depois de raspar o bigode ninguém, nem a esposa de Marc, Agnès, notassem a mudança. A partir daí, acompanhamos Marc tentando entender o que ocorre à sua volta: será uma das brincadeiras articuladas pela esposa, com amigos e colegas de trabalho? Marc deve acreditar quando ela diz que ele nunca usou bigode? Como reagir quando não só os amigos e colegas de trabalho mas até o garçom do café da esquina não notam diferença alguma? Marc procura desesperadamente justificar o injustificável: se não for uma brincadeira de mau gosto dos seus conhecidos, seria algum bug no Universo que só ele notou? Ou pior, estaria a esposa e o sócio tentando fazê-lo agir como louco para tomar tudo dele? São hipóteses razoáveis levantadas mas que, ao final, serão irrelevantes.
É certo que os relacionamentos exigem certa dose de tolerância para com os defeitos do parceiro. Mas o que fazer quando estes defeitos se voltam contra quem os tolera? Agnès era uma excelente mentirosa. Pregava peças nos amigos e, mesmo que a mentira parecesse óbvia, negava tão convictamente que os enganados passavam a considerar outras hipóteses, mesmo as mais absurdas. Mas em cinco anos de casamento, Marc sempre assumiu o papel de cúmplice, nunca o de vítima. Aquela brincadeira seria a primeira traição de Agnès e isso machucava Marc.
A trama evolui ao ponto em que ora Marc acredita – e nos leva junto – que ele é quem está louco e por isso faz sofrer a amada, para momentos depois concluir que ela é quem enlouqueceu e deve ser tratada com cuidado e amor. Carrère leva o choque de relacionamentos ao extremo: o quanto alguém estaria disposto a amar quem não acredita nele? Ou como seria possível amarmos sem acreditar na pessoa?
Marc foge para Hong Kong. É a única saída no quebra-cabeças onde ele acabará perdendo a esposa de qualquer forma. O melhor é ficar longe dela que fazê-la sofrer ou sofrer por causa dela. Mas a distância nem sempre é sinônima de segurança e a fuga dos problemas gera apenas uma satisfação temporária, pois os problemas podem encontrar os fujões.
Carrère fez um filme que incomoda e atiça a curiosidade ao mesmo tempo. Tanto é, que a verdadeira paranóia para o telespectador começa justamente quando o filme acaba. Muitos ficarão com a cara de bobo se perguntado “como assim? e agora?”. Eu fui um destes. Mas, como bom teimoso que sou, depois de assistir o filme e ficar boiando, comprei o livro. Quem é leitor tem sempre a idéia inocente de que o livro não foi bem adaptado para as telas, bla-bla-blá, que terá todas as respostas quando ler o livro, bla-bla-blá. Pobre coitado! A adaptação e direção do filme são perfeitas e, se não fosse alguns exemplos ruins de outros por aí, poderíamos afirmar que todos os livros deveriam ser adaptados e dirigidos por seus escritores. Os cortes e modificações do filme deram ritmo e o transformaram numa obra-prima nonsense. Os detalhes visuais como cores fortes em objetos colocados como bodes no meio da sala (expressão israelense para os detalhes que desviam a atenção da questão principal) são o toque de mestre. A música clássica e o silêncio nos momentos oportunos dão o toque de suspense.
E o livro? Digamos que é a versão hard do filme. Seria impossível Carrère passar para a tela todo o terror mostrado no livro. Eu não me chocava com um parágrafo final tão tenso e surreal desde Os Trabalhadores do Mar de Victor Hugo, outro francês por sinal. O livro O Bigode poderia dividir-se em duas partes: quando Marc é sugado pelo redemoinho sem conseguir se livrar dele, e outra quando já está no fundo, e o redemoinho o cospe para fora. Ambas situações brutais para o protagonista. Carrère desconstrói a vida do personagem pouco a pouco, assim como a lógica, a sanidade e a linearidade, para depois construir tudo de novo, de um jeito diferente, como em um quadro que mostra duas paisagens distintas, dependendo do ângulo do observador.
O livro faz duas referências ao Brasil que não aparecem no filme: a música que Marc ouve em casa no livro é bossa nova enquanto no filme é clássica; e quando "comeu muito, pratos que lhe lembraram muito a cozinha brasileira" (pg. 148) em uma vila chinesa, no filme é um ato que não vem acompanhado por pensamentos ou narrações.
Pode-se dizer que a essência da história focaliza a questão da individualidade. Nos subterfúgios e nas comparações usadas para justificar quem somos e porque somos assim. Todos se alicerçam em algum objeto, pessoa ou idéia para se definir como pessoa e usa referenciais para explicar porque é assim ou assado. Mas o que acontece quando um destes pontos de apoio simplesmente desaparece? Quando a verdade em que se acredita cegamente revela-se uma fraude? Ou quando alguém que é a razão do seu viver não existe mais? Esta base em que alguém se apóia pode ser para um, o bigode, para outros a carreira, um desejo, um ideal ou uma pessoa. Como reagiríamos se nos tirassem o que ou quem nos é mais importante hoje? Carrère usa uma situação extrema para provocar a reflexão em coisas corriqueiras: o ser, os relacionamentos, a lucidez e a realidade. E o faz de maneira genialmente original.
Veja também:
leitura: Agosto de 2008
obra: O Bigode (La Moustache), de Emmanuel Carrère
tradução: Herbert Daniel
edição: 1ª, Coleção Ficções deste Espaço e Tempo v. 10 - Editora Espaço e Tempo (1988), 158 pgs
procure o melhor preço:
Existem um filme e um livro com o título O Bigode. O roteiro e direção do filme são do escritor do livro: Emmanuel Carrère, um jornalista e historiador francês - de 40 e poucos anos - que escreveu meia dúzia de livros e já está sendo considerado o substituto do checo Franz Kafka – autor de A Metamorfose e O Processo –, um escritor que influenciou fortemente a literatura moderna. Kafka tinha a capacidade de deixar o leitor com a impressão de estar dentro de um sonho, ou melhor, de um pesadelo, mostrando aspectos primitivos da psiquê humana em situações fantásticas. E Carrère escreve, roteiriza e dirige como um legítimo herdeiro de Kafka.
No filme O Bigode (La Moustache – França, 2005) o telespectador se vê frente a frente com um dos maiores problemas existenciais da humanidade: a história de Marc, um cara que raspa o bigode. Ok, talvez este não seja lá um grande problema existencial da humanidade. Não seria, se depois de raspar o bigode ninguém, nem a esposa de Marc, Agnès, notassem a mudança. A partir daí, acompanhamos Marc tentando entender o que ocorre à sua volta: será uma das brincadeiras articuladas pela esposa, com amigos e colegas de trabalho? Marc deve acreditar quando ela diz que ele nunca usou bigode? Como reagir quando não só os amigos e colegas de trabalho mas até o garçom do café da esquina não notam diferença alguma? Marc procura desesperadamente justificar o injustificável: se não for uma brincadeira de mau gosto dos seus conhecidos, seria algum bug no Universo que só ele notou? Ou pior, estaria a esposa e o sócio tentando fazê-lo agir como louco para tomar tudo dele? São hipóteses razoáveis levantadas mas que, ao final, serão irrelevantes.
É certo que os relacionamentos exigem certa dose de tolerância para com os defeitos do parceiro. Mas o que fazer quando estes defeitos se voltam contra quem os tolera? Agnès era uma excelente mentirosa. Pregava peças nos amigos e, mesmo que a mentira parecesse óbvia, negava tão convictamente que os enganados passavam a considerar outras hipóteses, mesmo as mais absurdas. Mas em cinco anos de casamento, Marc sempre assumiu o papel de cúmplice, nunca o de vítima. Aquela brincadeira seria a primeira traição de Agnès e isso machucava Marc.
A trama evolui ao ponto em que ora Marc acredita – e nos leva junto – que ele é quem está louco e por isso faz sofrer a amada, para momentos depois concluir que ela é quem enlouqueceu e deve ser tratada com cuidado e amor. Carrère leva o choque de relacionamentos ao extremo: o quanto alguém estaria disposto a amar quem não acredita nele? Ou como seria possível amarmos sem acreditar na pessoa?
Marc foge para Hong Kong. É a única saída no quebra-cabeças onde ele acabará perdendo a esposa de qualquer forma. O melhor é ficar longe dela que fazê-la sofrer ou sofrer por causa dela. Mas a distância nem sempre é sinônima de segurança e a fuga dos problemas gera apenas uma satisfação temporária, pois os problemas podem encontrar os fujões.
"Duas vezes por dia, entrementes, barbeava-se, retificando para seu uso pessoal a brincadeira que diz que a ociosidade consiste em escutar crescer a própria barba. Escutava seu bigode, mesmo que não fosse muito atentamente, saboreava, às vezes, deitado num banco, a idéia abstrata e doravante sem substância de ter escapado." (pg. 150)
Carrère fez um filme que incomoda e atiça a curiosidade ao mesmo tempo. Tanto é, que a verdadeira paranóia para o telespectador começa justamente quando o filme acaba. Muitos ficarão com a cara de bobo se perguntado “como assim? e agora?”. Eu fui um destes. Mas, como bom teimoso que sou, depois de assistir o filme e ficar boiando, comprei o livro. Quem é leitor tem sempre a idéia inocente de que o livro não foi bem adaptado para as telas, bla-bla-blá, que terá todas as respostas quando ler o livro, bla-bla-blá. Pobre coitado! A adaptação e direção do filme são perfeitas e, se não fosse alguns exemplos ruins de outros por aí, poderíamos afirmar que todos os livros deveriam ser adaptados e dirigidos por seus escritores. Os cortes e modificações do filme deram ritmo e o transformaram numa obra-prima nonsense. Os detalhes visuais como cores fortes em objetos colocados como bodes no meio da sala (expressão israelense para os detalhes que desviam a atenção da questão principal) são o toque de mestre. A música clássica e o silêncio nos momentos oportunos dão o toque de suspense.
E o livro? Digamos que é a versão hard do filme. Seria impossível Carrère passar para a tela todo o terror mostrado no livro. Eu não me chocava com um parágrafo final tão tenso e surreal desde Os Trabalhadores do Mar de Victor Hugo, outro francês por sinal. O livro O Bigode poderia dividir-se em duas partes: quando Marc é sugado pelo redemoinho sem conseguir se livrar dele, e outra quando já está no fundo, e o redemoinho o cospe para fora. Ambas situações brutais para o protagonista. Carrère desconstrói a vida do personagem pouco a pouco, assim como a lógica, a sanidade e a linearidade, para depois construir tudo de novo, de um jeito diferente, como em um quadro que mostra duas paisagens distintas, dependendo do ângulo do observador.
O livro faz duas referências ao Brasil que não aparecem no filme: a música que Marc ouve em casa no livro é bossa nova enquanto no filme é clássica; e quando "comeu muito, pratos que lhe lembraram muito a cozinha brasileira" (pg. 148) em uma vila chinesa, no filme é um ato que não vem acompanhado por pensamentos ou narrações.
Pode-se dizer que a essência da história focaliza a questão da individualidade. Nos subterfúgios e nas comparações usadas para justificar quem somos e porque somos assim. Todos se alicerçam em algum objeto, pessoa ou idéia para se definir como pessoa e usa referenciais para explicar porque é assim ou assado. Mas o que acontece quando um destes pontos de apoio simplesmente desaparece? Quando a verdade em que se acredita cegamente revela-se uma fraude? Ou quando alguém que é a razão do seu viver não existe mais? Esta base em que alguém se apóia pode ser para um, o bigode, para outros a carreira, um desejo, um ideal ou uma pessoa. Como reagiríamos se nos tirassem o que ou quem nos é mais importante hoje? Carrère usa uma situação extrema para provocar a reflexão em coisas corriqueiras: o ser, os relacionamentos, a lucidez e a realidade. E o faz de maneira genialmente original.
Veja também:
- Sinopse da Editora Rocco
- Resenha do Correio Braziliense
- Ficha técnica e imagens do filme no Adoro Cinema
- Entrevista com Carrère sobre o filme para o Festival do Rio 2005
leitura: Agosto de 2008
obra: O Bigode (La Moustache), de Emmanuel Carrère
tradução: Herbert Daniel
edição: 1ª, Coleção Ficções deste Espaço e Tempo v. 10 - Editora Espaço e Tempo (1988), 158 pgs
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Muito boa crítica!
ResponderExcluirSaudações,
VA
Vc me convenceu. Vou comprar o livro e ver o filma.
ResponderExcluirMuito boa resenha e vou ver o filme e de quebra ler o livro. A ordem ainda não sei. Abraços!
ResponderExcluirAdorei, também. Vou procurar pelo livro e pelo filme - o livro, é claro, será a minha primeira experiência.
ResponderExcluirDe qualquer forma, a paranóia com o bigode me lembrou uma célebre crônica do Luis Fernando Veríssimo, "O Nariz". Conheces?
Um abraço!
olá Pelvini
ResponderExcluirConheço O Nariz do Verissimo sim, ;)
Só q o livro do Carrère vai além... beira o terror.
1 abraço.
parece interessante, Jefferson. vou procurar comprar esse livro.
ResponderExcluirabs.
Acabei de ver o filme e fiquei meio atordoado e até o momento não sei ao certo do que se trata. Talvez seja sobre o nada ou tudo...
ResponderExcluirAssisti ao filme na madrugada de ontem. Gosto do tipo de final apresentado - aquela frase "tá e daí? Acabou?" faz com que no outro dia o filme fique passando em nossa mente. No início da película me veio à cabeça um Conto do russo Nicolai Gogol chamado o Nariz, que conta a história de um homem que acorda sem o nariz. Na minha opinião, fugindo à idéia de absurdo, creio que o personagem é esquizofrênico.
ResponderExcluirOlá...
ResponderExcluirAcabei de assistir o filme e corri direto na internet à procura de alguma crítica do filme.
E no caso encontrei só a sua (lá no artilharia cultural).
A minha primeira ideia foi a mesma que o @Menestrino teve... Que se tratasse de um caso de esquizofrenia - Algo como Uma Mente Brilhante - onde o protagonista cria uma realidade falsa.
Agora, qual seria a verdadeira? Se é que existe uma.
Sei que estou viajando!
Agora preciso ler o livro!
Ótimo seu texto Jefferson!
Abraço!
olá leandro, obrigado pela visita e comentário. leia o livro sim, ele vai te dar outra visão do filme. eu, aliás, só li o livro pq o filme mexeu comigo. são poucos os filmes capazes de fazer isso. e já vou te avisando, o livro tb vai mexer. vc acha ele usado em sebos online por 5 reais. depois q ler, passa aqui pra falar as tuas impressões. 1 abraço.
ResponderExcluirMuito boa crítica! =D
ResponderExcluirgostei muito do livro e fiquei muito confuso com toda a trajetória dele, uma ótima leitura de fato! =D
Abraços!
Pedrodeamolar.blogspot.com.br
obrigado pelo comentário, pedro. realmente ñ é 1 livro fácil, mas justamente estes livros q fazem o teu cérebro suar são os q te fazem evoluir. abraços.
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