Como matar um bicho-papão - Parte III: A MÃE
Leia também: Parte II: O PAI
"Quando eu namorava a sua mãe ele era o meu melhor amigo. Até ambos me traírem juntos. Magoado, mudei de cidade enquanto Cairo e Alessandra passaram a morar juntos. Mas isso foi antes de você nascer."
Soava estranho para Andréa ler revelações sobre o passado de sua mãe e de seu pai. Eles não só haviam traído um namorado e um amigo, respectivamente, como também nunca comentaram nada sobre o assunto. Pelo menos não próximo dela. Não que ela acreditasse totalmente naquelas palavras, pois a primeira reação quando acusam a um ente querido é a negação incondicional, a proteção fraternal, a confiança pela intimidade e proximidade. Mesmo que as acusações sejam verdadeiras. Confiamos e protegemos basicamente porque precisamos de alguém para confiar e nos proteger quando precisarmos. Porém, Andréa sabia que todos possuem segredos – pequenos ou não – inclusive os seus pais, inclusive ela. Principalmente ela.
Andréa sentia vergonha por sua mãe estar internada no manicômio municipal. Este foi o motivo que a fez mudar-se de bairro. Evitaria a fofoca sobre o episódio fatídico que ela se esforçava tanto a esquecer. Envergonhava-se de ter sido atacada com uma faca num acesso violento de loucura de sua mãe. Carregaria pelo resto da vida a maldição de sua própria mãe tentar matá-la. Assim como carregaria o fardo de assinar os papéis da internação, pois seu pai resolveria a situação de outra maneira: daria uma coça na desmiolada até ela sarar ou piorar de vez. Os seus irmãos não a assistiriam, há muito estavam perdidos pelo mundo. Ela era a única responsável pela mãe louca.
Tentou visitar a mãe algumas vezes, contudo sem sucesso, pois era só Alessandra ver a filha para atacá-la com quaisquer objetos próximos, urrando e esbravejando ofensas. Por fim, desistiu e abandonou a mãe aos cuidados dos enfermeiros e de Santa Dinfna, protetora dos doidos varridos.
"Por muito tempo descontei em outras mulheres o mal que Alessandra me fez. Me transformei num monstro, um bicho-papão, que comia vítimas indefesas e abandonava os restos na sarjeta. Hoje não me orgulho do que fiz. Muitas inocentes sofreram sem merecer. Mas isso foi antes de você nascer."
E se essa história tiver alguma verdade? Afinal, ninguém confessa os seus pecados a uma pessoa estranha sem querer provocar uma atitude condescendente e misericordiosa. Entretanto, quem escreveu a carta não procurava absolvição, mesmo porque está morto e enterrado. Então qual o propósito de narrar estes fatos? Prejudicar a sua relação com seu paizinho, o único que lhe restou após sua mãe ter sido internada? Andréa não entendia em quê tais revelações lhe seriam úteis.
Por outro lado, abria-se diante de Andréa uma vitrine onde poderia escolher qual pai desejava. Todavia, ela já conhecia Cairo. Ele habitava na sua memória como pai desde antes dela pensar por si própria. Cairo estava vivo, morava com ela, brincava com os seus filhos todos os dias e ajudava nas despesas da casa. Quem era o outro para ela? Ninguém. Apenas um nome em um pedaço de papel. E ainda havia algo mais importante: Cairo era o único que compactuava com Andréa o segredo da loucura de Alessandra.
"Certa vez, voltei e Alessandra, mesmo ainda com Cairo, implorou por meu perdão. Disse que sempre me amou, humilhou e se sujeitou a todos os meus sadismos. Mas eu não sentia mais nada por ela. Eu não conseguia sentir mais nada por ninguém. Por isso, depois de satisfazer o meu desejo por vingança em Alessandra, fui embora, sem saber que você nasceria pouco tempo depois."
Andréa negava-se a crer que nascera como resultado de uma vingança por causa de uma traição. Era algo desprezível demais. Ninguém merece saber que é fruto do ódio ao invés do amor, ninguém quer carregar em seus genes o estigma da maldade dos pais. Desejaria mil vezes não saber se essa fosse a verdade. Não queria ter essa história na sua vida nem a sua vida nessa história, preferiria a alegre ignorância ao conhecimento que trouxesse o sofrimento como seqüela. Decidiu que somente terminaria de ler o parágrafo e jogaria a maldita carta no lixo.
"Depois, visitando a cidade, vi sua mãe passeando com você. Uma linda menina de cachos dourados que só podia ser minha. Apaixonei-me pelos seus olhos azuis. O amor que senti pela filha superou o ódio pela mãe. Naquele momento, morreu o monstro, o bicho-papão, o coração sádico e endurecido. Eu desejei ser uma pessoa melhor, por você, para você. Foi quando resolvi te conhecer. E quando morri por sua causa. Agora, preciso te ajudar a se livrar do trauma de infância que, sem querer, deixei que acontecesse."
Continua: Parte IV: O TRAUMA
Nossa!... Isso tá ficando cada vez mais interessante. Essa menina tá passando por maus pedaços, hein.
ResponderExcluirAguardando o segmento ;)
Dai,
ResponderExcluirO próximo segmento sai somente mês que vem, pois esta parte ainda não está terminada. Preciso acrescentar alguns detalhes relevantes neste capítulo. Fique atenta que irá perceber quais são.
1 abraço.
Jeff,
ResponderExcluirNa boa,
Estou achando o m�ximo esse 'seriado'. Pense em transformar essa id�ia em um formato permanente. Se vc continuar, espero que engate no Uncle Philomeno. Quem sabe eu me anime e tente fazer tbm aqui no Dai. Acho bem legal, e aos poucos as pessoas podem ir aderindo. Ah, eu adoro inova�es e este formato combina com blogosfera. V� em frente!
Estarei atenta aos detalhes.
Beijo.
Já estou aqui... agora vou para as inéditas. Estou muito intrigada. Bem, deixa eu ler, to ansiosa ;)
ResponderExcluir