O Show do Ano

Finalmente tomei coragem e chamei Marisa para sair. Não é que eu já não tivesse chamado alguém para sair antes, mas é que com a Marisa era diferente. Era uma situação sensivelmente mais complicada, pois havia algo em mim que sempre barrava as minhas ações, como que me auto-examinando repetidas vezes em busca de prováveis falhas, para que nada de errado acontecesse. Afinal, tudo relacionado a Marisa deveria ser perfeito.

Depois de dois meses de treinamento intensivo em frente ao espelho, de várias oportunidades de conversa perdidas por ela estar sempre acompanhada das amigas (é mais fácil recusar um convite quando se está em grupo), encontrei-a finalmente sozinha na lanchonete da cantina. No que viria a ser uma de minhas melhores atuações teatrais, precisa e exaustivamente ensaiada, a convenci que eu ganhara dois ingressos sorteados pela rádio para o show do ano, no qual todos queriam ir, e tive de conter uma explosão de alegria quando ouvi um inacreditável e divinal sim saindo de sua boca. Minha tática maquiavélica fora simples: Comprei os melhores ingressos algumas semanas antes do show. Na véspera, quando a bilheteria já estava totalmente esgotada, dei o bote. E de um reles conhecido que somente trocava alguns ois pelos corredores do colégio fui alçado à posição de acompanhante da Marisa no show do ano.

E este com certeza seria o show do ano. Mesmo que chovesse. Mesmo que a banda não aparecesse. Mesmo que ninguém aparecesse. Bastava que a Marisa estivesse lá. Comigo. Eu estava convicto que esse show seria inesquecível. Como realmente foi.

Comprei uma roupa nova, peguei emprestado o carro de meu pai, saquei no banco mais dinheiro do que conseguiria gastar em uma noite, tudo por Marisa. Na hora marcada, estava na porta da casa dela e fui recepcionado pela sua mãe. Espere no sofá que ela está quase pronta, foi a explicação que ouvi. Entendo porque as mulheres nos fazem esperar: tudo aquilo que é bom deve nos custar algum tempo e esforço. E certamente valeu a pena, pois Marisa estava excepcionalmente linda. Ela chegava mesmo a estar radiante. Os seus cabelos castanhos estavam arrumados de um jeito que eu nunca notara antes no colégio. Seu perfume era mais adocicado do que aquele que eu já me acostumara sentir ao passar por ela nos corredores. Na certa esse era o que ela usava com os poucos seres agraciados com a dádiva de sua companhia em particular. Sua roupa realçava um jeito extrovertido e festivo, e apesar de não ser imoral, provocou uma imediata sensação de excitação em mim.

No caminho do show, conversamos sobre vários assuntos. Eu até descobri que ela trabalhava como auxiliar em uma clínica odontológica no centro da cidade. Deduzi que teria que começar meu tratamento dentário em breve. Ela parecia particularmente interessada em saber mais sobre mim, minha família, meu emprego, e gostei de compartilhar com ela um pouco da minha existência. Sentia que algo entre nós começara a nascer naquele momento.

O show estava ótimo. Eu me sentia imponente com Marisa ao meu lado. O seu sorriso era todo voltado para mim. Eu estava sonhando e não pretendia acordar tão cedo. Se dependesse de mim, talvez não acordasse nunca. Dançamos juntos, dançamos separados, dançamos várias músicas, até uma em um ritmo mais lento que deixou os nossos corpos muito próximos. Senti o seu calor, o seu aroma, até mesmo o seu hálito perfumado. Só faltava uma coisa: sentir o seu beijo. Eu estava muito nervoso, com as mãos suando frio e com a boca seca, e resolvi comprar uma bebida para dar um pouco mais de coragem. Também precisava jogar um pouco d'água no rosto. Era chegada a hora de novamente colocar em ação os meus recém descobertos dotes teatrais ao que já estava meticulosamente planejado: chegaria somente com um copo de bebida e o daria a ela; depois, assim que ela bebesse um gole, me aproximaria mais e pediria para experimentar o sabor, só que não o sabor da bebida, mas o de seus lábios. O plano soava perfeito.

Mais seguro de mim, com o copo em mãos, retornei ao local onde havia deixado Marisa. Ao avistá-la, paralisei de imediato. Ela não estava mais sozinha. A princípio, recusei acreditar, talvez não fosse ela. Olhei desesperadamente em vão ao meu redor, mas a roupa, o cabelo, a altura, tudo pertencia a Marisa. Era ela. A imagem que entrou através da retina chegou em frações de segundos até o cérebro que, entorpecido, a remeteu junto com uma descarga alucinante de adrenalina para o coração, o qual ainda insistia em bater, mas desta vez batendo pra machucar com força, e o coração enviou a única resposta natural, lenta e dolorosa, que rasgava tudo o que encontrava em seu caminho até finalmente explodir em meus olhos, que se encheram de lágrimas instantaneamente. Marisa estava beijando outro. Apesar de todas as imagens ao meu redor estarem borradas, aquela imagem de Marisa já estava nitidamente marcada em mim. Mesmo fechando os olhos, ainda continuava a vê-la. Voltei rapidamente antes que ela me visse, andando às pressas em meio à multidão até um lugar onde mais ninguém me visse. Um lugar onde eu não visse a mais ninguém.

Como pude ser tão burro? O que Marisa veria em alguém como eu? Em meio as tremedeiras e soluços, as perguntas choviam por todos os lados, cada uma disputando qual me torturaria mais. Repentinamente, uma pergunta se destacou das demais: O que eu faria agora e como superaria o meu constrangimento naquela situação? Bem, a atitude mais racional a tomar seria voltar e conversar com Marisa, pelo menos para ouvir o que ela teria a dizer ou para vê-la rir da minha cara ou até para receber o tiro de misericórdia.

Voltei. Eles ainda estavam lá, mas agora abraçados. Desta vez Marisa me viu chegar, e entreguei o copo de bebida a ela. Ela me apresentou a um tal de Paulo, seu conhecido de outras festas. E eu fui apresentado como o-amigo-do-colégio-que-lhe-dera-carona-para-o-show. Minha novíssima representação improvisada de indiferença deve ter convencido, pois algumas músicas depois, os dois voltaram a se beijar, bem na minha frente. Assisti mazoquistamente a cena repetidas vezes até o final do show, somente com alguns breves intervalos quando Marisa me perguntava se eu não queria que ela me apresentasse alguma amiga sua. Talvez estivesse sentindo dó de mim. Polidamente, recusei todas as ofertas. O show acabou, os dois se despediram (com mais beijos e abraços e carinhos), e a levei de volta para casa. Antes de descer do carro, Marisa me deu um beijo na face - tal qual Judas - e disse que nunca tivera um amigo tão legal quanto eu. Eu também nunca antes fora um amigo tão legal dessa maneira.

O ser que sobrou de mim depois daquela noite tinha a certeza de que eu estivera o tempo todo certo: aquele show do ano fora realmente inesquecível.

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Comentários

  1. Pois é, my friend, o texto ficou ótimo, apesar de que no seu lugar eu seria mais explosivo e aprontaria alguma. Cada um na sua. Pelo menos você assistiu o show do ano! Abraço!!!

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  2. Já havia lido o Humpf. Magnífico.

    Agora, nova surpresa. Até parece que você conheceu minha adolescência? Parabens.

    Obrigado por sua amizade.

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  3. Achei legal o seu texto, penso que o personagem principal (narrador) deu uma de Dom Casmurro,( ao avesso) pois em nenhum momento a Marisa demonstrou que aquilo era um encontro; me pareceu mais que era uma saída legal com um amigo legal.Digo, o carinha com quem ela sai não me parece namorado, tudo ocorre mais na mente dele. O final foi bacana, melancólico como devia ser, pois o personagem, por ser tímido e reservado, ia agir assim mesmo; educado e contido.(de fato, fica claro que ela gostava mesmo era do cara que aparece durante o show).
    Vc construiu bons personagens, e passou ao largo do maniqueísmo, coisa que abomino e que deve ser banida da literatura moderna.
    As pessoas comuns são assim, como no seu conto: nem santas nem demônios, apenas seres normais.

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  4. Um aspecto interessante que notei no feedback que tenho tido deste texto é a identificação que cada leitor tem em relação aos personagens: enquanto uns se identificaram como o rapaz, outros já assumiram a defesa da moça, e ainda para outros caiu a carapuça do outro rapaz que apareceu durante a festa. Isso nos faz pensar que em uma história devemos tratar os personagens secundários com o mesmo carinho que o principal.

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