Quem me olha do lado de lá

Há um cadáver dentro do meu quarto. Já não enxergo como antigamente, mas os imbecis não me enganam, eu posso sentir o cheiro. Aposto que foi ideia da imprestável da minha filha para me enlouquecer. Malditos filhos, eles querem a minha fortuna! Já não fosse suficiente me deixarem vigiada dia e noite neste quarto pela espiã que denominam carinhosamente como enfermeira Moema agora me vêm com estes joguetes infantis. Nos meus belos anos quem ousasse me enfrentar, não importa se fossem os caras maus de verdade ou corações partidos vingativos ou enfermeiras de sorriso falso, conheceriam de perto a sola francesa do meu salto alto em suas caras. Eu deveria ter aprendido a lição com Cronos: devore antes de ser devorado. Ah, malditos! Os meus velhos ossos ainda servem para me conduzir com dificuldade, lentamente, pelo cômodo. A dor é tamanha que há tempos até mesmo ela deixei de sentir. A claridade da janela cega, mas forças não existem para fechá-la. O chão estremece de frio ao sentir os meus pés. A idade se condensou em minha prisão e na maldição dos meus herdeiros. Bem feito! Paro em pé diante do espelho e ele reflete uma mulher esbelta de olhos felinos e longos cabelos negros. Eu sei quem você é, querida. Ela sorri diabolicamente ao se admirar do que aquele corpo foi capaz de induzir a homens, mulheres e crianças fazerem. O meu reino por uma noite, sussurram vozes na memória. Durmam com o inimigo, meus queridos, para a eterna satisfação de sua futura viúva. Cada flerte, cada taça de champanha, cada vestido de seda caindo suavemente, cada gemido de prazer capitalizados em títulos de rendimento a longo prazo. O problema de ter sido tão eficiente foi ter meus ganhos ultrapassando os anos de vida. Se mate de inveja, Lady Macbeth, pois remorso e culpa são natimortos para mim! Embora até tenha previsto que as serpentes que daria à luz herdariam o meu veneno, não me preparei para que o usassem homeopaticamente como tortura contra mim. Uma brilhante tortura, admito. Como estão fazendo agora, para me punirem ainda mais, cobrem com um lençol branco o meu amado espelho. Safados! Malditos!

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