Pulsão por Jogar

Um jogo de chantagem sexual envolvendo dois adolescentes e um professor, aonde quem assume o papel de vítima é um tanto indefinido. Esta seria uma sinopse simplória para o livro A Menina Sem Qualidades (2004), da escritora alemã e ex-advogada Juli Zeh. Isto porque o livro traz muito mais: levanta a teoria dos jogos aplicada nas relações humanas; mostra o conflito gritante entre gerações e as ideologias que cada uma delas acredita; reflete como a mudança (ou muitos diriam a falta) de valores, moral, ética e objetivos afeta os jovens contemporâneos; levanta o papel da literatura, música, filosofia e do direito na vida cotidiana, bem como os efeitos do cenário político mundial no dia-a-dia; entre outros assuntos. Tudo apresentado em uma prosa densa e complexa, característica da literatura alemã, com metáforas e diálogos instigantes e inteligentes.

O livro inspirou a série homônima da MTV Brasil (2013), que teve o mérito de ser uma excelente adaptação abrasileirada. O professor polonês refugiado que dá aulas de literatura na Alemanha tornou-se um argentino no Brasil, transferindo assim certa carga de xenofobia. A literatura alemã deu lugar à latino-americana, com destaque aos livros do Cortázar. As referências musicais do livro, como a banda Evanescence que estourava na Alemanha em 2004, foram atualizadas para uma lista das preferências pessoais do diretor Felipe Kirtch. Enfim, a série não ficou igual ao livro, mas o resultado é satisfatório.

Quem desejar assistir a série, os capítulos estão disponíveis gratuitamente no sítio da MTV Brasil. As referências literárias citadas na série, aparecem aqui neste tópico. Abaixo, seguem alguns trechos destacados do livro:
O conceito de revolução pacífica é um oximoro.
É provável que eu seja a favor de que o ser humano receba aquilo que deseja em medidas limitadas.
Com energia, ele colocou as mãos às costas de Ada e empurrou-a em frente. Firmes e sem temperatura, seus dedos estavam entre as omoplatas dela e se encaixavam ali com perfeição, parecendo ter crescido no lugar como asas de anjo. O sistema nervoso de Ada anunciou dor, uma sensação extrema de bem-estar, calor e frio ao mesmo tempo. E então ela soube enfim que tinha razão: Alev era o único culpado pelo mal-estar que ela sentira, pela fraqueza e pelos terríveis laços de pensamento das últimas semanas. Ele possuía aquela quantidade de força que ela havia perdido, e o toque de seus dedos foi igual a um pagamento de 2 centavos em uma dívida que chagava aos 10 milhões. O que ela mais teria gostado de fazer seria cortar suas mãos e ficar com elas. Assim que ele a soltou a fim de apontar para a porta de Grüttel, o corpo dela voltou ao estado da recusa a cumprir ordens, obedecia com indolência ou se recusava a obedecer, e ela tinha dificuldades em cerrar os punhos, como se tivesse acabado de acordar de um sono de 12 horas. Pelo menos, Ada agora sabia que não estava sofrendo as sequelas da insolação croata, e também que não estava doente nem grávida.
[Aos olhos de uma mulher] um homem pode ser culpado de incontáveis maneiras.
Desde que aprendeu a ler, Ada lia muitos livros. Ler não era para ela nem trabalho nem hobby, não dava conta de nenhum interesse especial. Ler era uma condição na qual o tempo passava, porque não sabia fazer outra coisa, enquanto o intelecto de Ada era colocado em conserva no alimento, de modo que a cobiça agitada desse mesmo intelecto passava do consumo ao aproveitamento de forma constante e homogênea. [...] Ada lia como se empurravam troncos em uma serraria. E, uma vez que as toras mais grossas e duras demoravam mais a ser consumidas, ela preferia sobretudo a literatura do penúltimo século e tudo aquilo que havia sido escrito antes da Segunda Guerra Mundial. As obras novas, ela as considerava manobras de desvio das grandes questões, elas eram leves e doces, mais ou menos como pipocas, que deviam ser consumidas enquanto a cabeça se ocupava com outras coisas.
Esta resenha é fruto da parceria com o Empório Gourmet e sua nova seção "Livros que Merecem Bons Vinhos".

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