As cartas que a vida dá

O Rei parecia soberano naquela rodada. Sentia-se bem e sorria como se o jogo já estivesse ganho. Analisou demoradamente cada opção que tinha em mãos e descartou a carta escolhida sobre a mesa.

- Quero ver algum de vocês bater o meu Mágico. Uma das melhores cartas, no meu ponto de vista. É certo que ele sabe escolher como ninguém as cartas que precisam ser mostradas. Por ser de caráter dúbio, tem dois naipes, o da religião, que mostra o seu lado místico, fascinante, e o da arte, pelo seu aspecto ilusionista. É especialista em criar enganos e manipular plateias. E como esta carta me dá o direito de escolher o próximo a jogar, escolho você, minha querida.

A Rainha já desconfiava que seria ela. Apesar de cortês e educado, todas as jogadas do marido naquela noite demonstravam um ataque sistemático contra ela. Ela suspeitava haver algo mais implícito que a gana de vencer, mas não entraria no jogo do marido. Pelo menos, não despreparada.

- Obrigado pela preferência, meu senhor, mas creio que a confiança em sua carta foi demasiada. Tanto é que eu facilmente a sobreponho com a Vidente. Mesmo que ela tenha apenas o naipe religião, é mais forte que o do Mágico, e isso basta para vencê-lo. A Vidente transita entre superstições e fés cegas e ninguém é capaz de afirmar que ela não veja o presente, o passado e o futuro quando postos sobre a mesa. Ela desvenda mistérios e segredos. E prepara o terreno para o próximo à minha direita.

O Ás, percebendo a tensão espiando o jogo por cima dos seus ombros, tenta disfarçar. Maldita hora ele escolheu para comer a Rainha. Mas ela tinha insistido tanto, dizendo que o Rei só se preocupava com ouro e que não dava mais atenção que ela precisava. E a sem-vergonha soube inflamar o seu ego direitinho repetindo que ele deveria ser um ás na cama, o que, modéstia parte, era verdade. A transa tinha sido totalmente selvagem, em cima da mesa da copa do castelo. A mesma mesa em que agora jogavam. Será que o Rei desconfiava de algo?

- Os meus soberanos jogam esta noite somente com as cartas fortes, portanto é impossível para mim cobrir esta rodada. Creio dizer que o jogo será exclusivo entre meu senhor e minha senhora. Portanto, eu simplesmente descarto o Funcionário Público, que além de ser a carta mais entediante do jogo, me deixa fora da próxima rodada, para que eu pratique Paciência. Porém, se existe alguém que possa competir com os lances dos meus senhores é o próximo a jogar. Não é mesmo, Curinga?

Desgraçado! pensou o Curinga. Só porque comeu a Rainha somente muito tempo depois de mim agora vai querer me queimar. Mas ele não perde por esperar, vou desmoronar o castelinho de papel que ele está querendo construir. Ah, se vou.

- Não se menospreze, Às! Estou certo que você esconde mais em suas mangas que elogios baratos aos nossos suseranos. É papel do verdadeiro jogador não revelar o jogo logo no início e desviar a atenção de si para os outros. É um ótimo blefe, mas não cairei nele. E, para deixar claro a todos que não temo mostrar tudo o que tenho, lanço mão da maior carta que possuo: o Crupiê. Não derrota a carta da Rainha, mas demonstra que esta rodada praticamente já tem o seu vencedor. A não ser que o nosso querido Valete nos surpreenda.

O Valete suava puro nervosismo. Segurava apenas duas cartas, mas qualquer uma que jogasse o comprometeria seriamente. A Rainha o intimara a comê-la naquela noite, de novo, ou ele literalmente iria perder a cabeça. Ou as cabeças. E o Rei queria comê-lo, de novo, também naquela mesma noite. Era muita pressão para ele ser uma peça descartável do joguinho entre os dois. Mas ele não poderia fraquejar, a sua vida estava em jogo, precisava pensar em qual seria a sua melhor opção: recolher a sua espada na bainha ou lutar contra outra espada, durante a noite toda. Bem, ele poderia tentar fazer ambas as coisas. Sim, era uma aposta ousada, mas que poderia funcionar. Sem hesitar, jogou as duas cartas sobre a mesa.

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