Chame o Lobo

Sábado à tarde shopping lotado. Na praça de alimentação animais domesticados falam andam comem riem compram bebem pegam fila conversam e desconversam usando a última moda tecnológica como que programados a repetirem eternamente em si as condutas condicionadas a sua geração. Sentada em uma das cadeiras afixadas ao chão para demarcar a cocheira destinada a cada cliente a jovem Vitoriane – quase imperceptível aos demais – não come não bebe não fala. Na mesa à sua frente repousa um objeto tão incomum àquele habitat quanto ela. Um livro. Na capa um nome russo. No olhar uma procura.

À garota só restava torcer para que ele ela não faltasse ao encontro. E que quem quer que aparecesse não fosse apenas outro maluco como da última vez: um religioso pretendendo convertê-la à sua fé mas que depois de um pouco de conversa a convidara à um motel. Ela estava cansada disso. Muito. Esta seria a sua última tentativa antes de partir para a solução extrema. Foi quando seu olhar reparou alguém a encarando do outro lado da praça. Não percebera como o velho chegara até lá assim como as demais pessoas que passavam pareciam tampouco notá-lo apesar de não esbarrarem nele como que afastadas por algum campo de força. Quando ele viu que se fizera perceber por ela ensaiou um sorriso que mesmo àquela distância gelou a espinha de Vitoriane. O coração dela acusava: desta vez obtivera sucesso.

O homem caminhou lentamente. Parecia impecável em seu terno preto feito sob medida. Usava bengala para magneticamente abrir caminho entre a multidão. Os poucos cabelos eram bem tratados e o rosto de um vermelho escandinavo. O percurso pareceu durar horas intensificando a impressão que o homem causava a cada passo. Ao se aproximar da mesa inclinou a cabeça por um momento para ler o título do livro. Sorriu mais uma vez e ela arrepiou-se mais uma vez. Ele apontou para a cadeira vazia à frente dela ao que recebeu um leve aceno afirmativo. Sentou-se sorriu encarou observou-a. Quem prestasse atenção àquele encontro julgaria tratar-se de um homem lanchando com a filha ou neta.

O velho olhou para a mesa ao lado. “Oi, querida, foi você quem me ligou mais cedo?” – disse um rapaz ao celular. Os olhos da moça adquiriram um brilho especial na presença do acompanhante ao entender a deixa. Apontou para o livro e soltou um profundo suspiro preso a uma eternidade. “Há tempos eu venho te procurando nos livros” – iniciou com voz falha tossiu ajeitou-se na cadeira e continuou – “comecei pelos religiosos, depois espíritas, esotéricos, místicos e discipulares. Mas as melhores pistas consegui encontrar na literatura.” O homem a ouvia com os olhos. O silêncio do interlocutor deu segurança ao seu tom de voz. “Autores como Dee, Goethe, Borges, Crowley, Lavey, Blavatsky, Lovecraft, Dostoiévski, Coelho e outros me foram úteis em fazer-me conhecê-lo melhor, mas a ideia de como te encontrar só me apareceu depois de ler Skazka, do Nabokov.”

O velho fez um sinal e a garçonete quase que imediatamente trouxe-lhe uma tulipa de chope. Ele pagou com uma cédula deixando uma generosa gorjeta. Depois pegou o porta copos e o atirou suavemente sobre a mesa rumo a Vitoriane. Continha uma inscrição em forma arredondada. “Chope Belga: desde 1926 satisfazendo os seus melhores desejos.” Ela fez um sinal um sorriso um olhar de que entendera.

“Edwin, o protagonista do conto, tinha um problema com flertes. Eu também tenho, só que sou o oposto dele. Você quer ouvir a minha história?”. Uma senhora passa ao lado da mesa com o celular tocando “Oh yes, yes, Can’t you feel the passion when I look in your eyes?”. Vitoriane sorriu encabulada. “Tenho apenas dezesseis anos e provavelmente sou a mulher mais bonita neste shopping, talvez em toda a cidade. E você sabe que isso não é mentira”. “Oh yes, yes, Can’t you feel the passion when I look in your eyes?” volta ma mesma senhora a mesma música no celular carregando uma bandeja com comida a ser devorada. “Mas ninguém ao nosso redor percebe porque aprendi a me fazer não atraente, a me tornar pouco notada. Uso roupas largas e fora de moda que não realçam o corpo. Procuro passar um aspecto desleixado quando saio de casa: não me maqueio, não cuido dos cabelos e unhas e sempre uso um par de óculos de armação ridícula como disfarce. Todo este trabalho para que os homens – e ultimamente as mulheres – me deixem em paz. Os outros parecem não entender quando falo que não quero me relacionar com ninguém. Estou feliz sozinha com os meus livros e filmes. A misoginia torna o meu mundo melhor. Mas carrego comigo a maldição da beleza: não consigo deixar de atiçar a libido alheia quando sou natural. Não suporto os flertes de idiotas me comendo com os olhos e me provocando nojo. Até os olhares de meu padrasto me fizeram enclausurar-me em meu quarto. O que não reclamo. A única coisa que quero é ficar quieta em meu canto. Feliz. Sozinha. Por isso eu te procurei. Faço qualquer acordo, pacto, promessa ou sacrifício para que você me transforme em um ser invisível. Sei que você pode fazer isso. Eu estou cansada de fingir ser quem não sou e ter de fugir quando não estou fingindo. Quero viver tranquila sem ninguém me atrapalhando e sem atrapalhar ninguém. Por isso me coloco em suas mãos.”

O homem terminou em um único gole o que restava do chope e apontou o dedo para um cartaz de cinema. “Mostra de Filmes Estrangeiros. Hoje: Vem Dançar Comigo”. Levantou-se e estendeu a mão esquerda à Vitoriane. Ela olhou para os lados como que esperando que alguém tentasse convencê-la a mudar de ideia no último instante. Mas ninguém prestava atenção nela além do velho.

De mãos dadas jovem e velho atravessaram a praça de alimentação calmamente. Vitoriane nunca mais foi vista.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Expressões lá do Goiás (II): Cara lerda

Oração da Serenidade, de Reinhold Niebuhr

Destaques da 23ª semana de 2010