O Menino Milagreiro
Quando não querem que menino abelhudo escute a conversa de
gente grande os pais sempre o mandam pra cama mais cedo. Mesmo sem um pingo de
sono em sua cara curiosa. E nada parece funcionar nessa hora para chamar o
sono: fechar os olhos, contar carneirinhos, rezar, tentar não pensar. Porque o
sono é um visitante tinhoso. Deixa os ansiosos pela sua vinda se debatendo em
vão pela cama que encolhe. Ainda mais se é criança que cola o ouvido no
travesseiro e ouve passos se aproximando, mas ao abrir os olhos para ver quem é
o som para, só pra recomeçar assim que encosta no travesseiro. Vai ver é porque
existe algum gênio ou anjo ou sei-lá-o-quê dentro do travesseiro ou na cama ou
embaixo dela. Ou seria o sono que vem pé ante pé para atacar os desprevenidos?
O que os pais não sabem é que o silêncio da noite eleva
sussurros a ponto de serem ouvidos através das finas paredes de madeira. Vozes
preocupadas. Tom sério. A mãe briga com o pai. Diz que não há nada a perder. É
preciso tentar, homem, pense no futuro do teu filho. Oportunidade melhor pode
não aparecer. O pai é desconfiado, indeciso, cauteloso. Confessa que desde que
o menino milagreiro chegara à vila a vontade de visita-lo só fez aumentar.
Ainda mais depois que tanta gente passou a anunciar aos quatro ventos as curas
que fizera. O seu Lázaro encamado a não se sabe quanto tempo e agora anda para
cima e para baixo distribuindo bons-dias. A erisipela da filha da dona Matilde,
da quitanda. A espinhela caída do nhô Nelso. O cancro mole do capataz do doutor
Fagundes. Tudo gente de bem, que não ia inventar lorota. E tantos e tantos
outros causos que atraíram uma romaria até a casa do seu Salvador, onde o
menino milagreiro pediu pouso. A mãe fala com voz chorosa que o menino
milagreiro vai embora a qualquer momento. O pai diz que sabe disso, mas está
preocupado com o preço a ser pago. O menino milagreiro, antes de curar, faz uma
pergunta ao doente ou ao pai ou à mãe que o acompanha. É sempre a mesma
pergunta. Se o Altíssimo me conceder o dom da cura com o seu filho/pai/mãe/irmão/marido/esposa/vizinho/capataz/etc,
você jura por Nossinhora que depois vai atender a um pedido meu sem contestar,
sem desistir, sem se arrepender, fazendo qualquer coisa que eu pedir,
independente ser for coisa boa ou se for coisa ruim e independente de quanto
venha a sofrer por isso?
O pai já ouviu o povo comentar que os pedidos variam de
pessoa pra pessoa e ninguém é autorizado a contar o que é, mas pela cara de
tristeza quando saem da casa do seu Salvador até parece que o pedido é pior que
a doença curada. E mesmo que não cotem o povo comenta. A mulher do seu Lázaro
desapareceu, sumiu do mapa, ele diz que foi viajar para ver parentes, mas
aquela nunca saía da cidade e de repente dá a doida fazendo mala e cuia é pra
comentar mesmo. A quitanda da dona Matilde foi posta à venda, ainda que herança
de família há anos. O finado Ezequias deve estar se revirando no túmulo. O nhô
Nelso agora usa umas roupas estranhas, coloridas, parecendo mais mulher que
homem. O capataz do doutor Fagundes deu uma coça pesada no patrão e agora tá
lá, preso no xilindró. O pai afirma que é homem de palavra. Mas tem medo do que
o menino milagreiro pode pedir. É só a porcaria de um menino! E se pedir pra
matar? E se pedir pra abandonar mulher e filho? Até que ponto ele estaria
disposto a sacrificar pela saúde do filho, era a sua dúvida.
O filho imaginava como seria a vida de um menino milagreiro.
Passar o dia recebendo doentes tristes, chorosos, suplicantes para depois
saírem saudáveis, pulando, enxergando, falando, sorrindo. Devia ser um trabalho
bom. Mas melhor mesmo era mandar e os outros obedecerem. Sempre era o menino
quem obedecia, nunca pensou que existisse outro menino que fosse diferente. Ele
bem que gostaria de dar uma lição em alguns, tirar uma casquinha de outras, mas
se aproveitar só um pouquinho, e ainda dar conselho a outros para deixarem de
ser bobos.
Mas não faria nunca maldades com alguém. Isso não.
***
O sol já estava alto quando o homem e o menino entraram na
sala. Pediram licença e se aproximaram. Mesmo com o ambiente lotado, o homem conseguiu uma
cadeira e o garoto sentou-se na minha frente. Depois, cuidadosamente pegou as
muletas e as encostou na parede. De todos os olhos fixos em mim os do menino
eram os maiores e mais curiosos. Perguntei para o homem ao seu lado:
- Se o Altíssimo me conceder o dom de curar o seu filho, o
senhor jura por Nossinhora que atenderá um pedido meu sem contestar, sem
desistir, sem se arrepender fazendo qualquer coisa, independente ser for coisa
boa ou coisa ruim e de quanto venha a sofrer por isso?
- Eu juro – respondeu o homem com a voz firme – por Deus e
por Nossinhora.
Sorri e olhei o menino. Peguei suas mãos nas minhas, fechei
os olhos, fiz uma prece silenciosa e mandei que ele andasse. Ele sorriu
nervoso. Levantou-se esperançoso. Andou cauteloso. Até que correu e abraçou um
pai choroso. Passaram alguns minutos abraçados, até o pai recobrar a postura e
vir até mim.
- Pode me falar o que eu preciso fazer – disse, com a voz
falha e rouca.
- Então falarei na presença de todos para que confiram se o
senhor vai me obedecer.
- Eu vou obedecer.
- O senhor nunca mais, a partir de hoje, mas nunca mais
mesmo, vai mandar o seu filho dormir mais cedo. Mesmo que haja conversas de
adulto ou que passe da hora dele dormir. Entendeu?
- Só isso?
- Sim.
- Eu prometo.
- Então, já que diante dos presentes o senhor cumpre a
promessa que me fez, também vai ganhar a fazenda do doutor Fagundes para seu
filho subir nos pés de jabuticaba e nadar no rio!
Nisso entra o doutor Fagundes na sala e com um sorriso
aperta a mão do homem e lhe passa a escritura da fazenda. Em seguida, sai
rapidamente, tal qual entrara.
- E também ganhará a quitanda da dona Matilde para que sua
esposa tenha um trabalho só para ela!
Entram a dona Matilde e a esposa do homem, a mãe do garoto,
todos se abraçam e dona Matilde repassa as chaves da quitanda para eles.
- Também a filha mais bonita do professor, a Julinha, vai
ser namorada do menino de hoje em diante. Mas ele também poderá namorar a Maria
Rita, que mora do outro lado do rio, se quiser.
Entram as duas meninas de mãos dadas, se abraçam ao menino
cada uma de um lado, com sorrisos tímidos e rostos corados.
- Por fim, tudo o que o menino falar deverá ser obedecido
por todos, porque eu estou passando para ele os poderes que me foram dados. Ele
vai curar doentes, trazer chuva, amansar boi bravo, dançar valsa, ser bonito e
forte e alto, correr mais rápido que redemoinho, comer doces sem ter dor de
barriga e dor de dente, andar sobre as águas, visitar o avô quando der saudade
e sonhar só com as coisas que quiser, desde hoje até o dia em que cansar e
resolver brincar de outra coisa.
Depois de dias e dias tentando interpretar seu conto, finalmente consegui(com um auxílio, mas tudo bem). Eu gostei do seu conto desde a primeira leitura, você é mesmo bom nisso, sempre conseguindo fazer novas experiências literárias. Me sinto quase desafiada.
ResponderExcluirVeja lá no Escritora de 1° viagem, te indiquei para o Prêmio Dardos.
ResponderExcluirBeijão!