Escrever é perigoso

Eu escrevo a minha própria vida. E não tenho receio de reescrevê-la sempre que o enredo começa a me entediar. Às vezes, cai bem variar e viver um romance, um drama, uma comédia, um suspense policial. Observo, ao longe, a rebentação fazer a festa de alguns turistas na água enquanto à minha frente o restante de uma caipirinha esquenta. Uma leve brisa marítima bagunça os meus cabelos e as folhas dos classificados. Ajeito as páginas de O Globo e releio o pequeno anúncio centralizado na página.


Não sei que tipo de louco seria pior: o que publica um anúncio oferecendo-se como matador de aluguel ou o que se interessa por ele. Bem, na verdade eu sei exatamente o tipo de louco que faz isso, alguém exatamente como eu. Aqui, sentado à beira da piscina, em plena Avenida Atlântica, no mais conhecido hotel do Rio de Janeiro, aguardo o meu contato aparecer. Depois de duas semanas de troca de e-mails, combinar o valor razoável para as duas partes e marcar o encontro em um local público para a entrega da primeira parcela em dinheiro vivo e as informações da futura vítima.

Vocês podem estar pensando que eu, como escritor, sou apenas um tímido e inofensivo senhor esquálido, com alguns graus de miopia e andar engraçado. Ledo engano. Os melhores escritores são os mais sádicos com as personagens. E as personagens da minha história são os que estão ao meu redor. Resolvi fazer da minha vida a minha própria obra-prima. Por isso, ninguém está cem por cento seguro de continuar vivendo nos próximos capítulos. Cabe a mim decidir quando é hora de um plot point, um ponto de reviravolta na trama. E não falo de personagens secundários, facilmente descartáveis. Me interesso em especial pelas protagonistas, que precisam de problemas complexos, situações extremas, verdadeiras catástrofes para se e quando sobreviverem, chegarem ao final da jornada modificadas, aprimoradas. Ao menos até o próximo plot point.

Vejo o homem entrar na área da piscina, discretamente procurando alguém. À esta hora da manhã não há muitas pessoas banhando-se e é inevitável me encontrar em segundos. Seu rosto sério e sisudo ensaia um leve sorriso quando fixa o olhar em mim. Ele sabe que sou eu quem o espera. Carrega uma mochila preta. Tento me mostrar calmo externamente, mas por dentro meu coração dispara. Sempre fico assim quando me coloco em situações novas. Se eu pensava em desistir em algum momento, tal hora já passou.

- Bom dia, posso me sentar com o senhor?

- Sim, por favor.

- O que o senhor está bebendo?

- Uma caipirinha, me acompanha?

- Não, muito obrigado. Gostaria de ir logo ao assunto - ele reponde enquanto senta com a mochila no colo.

- Pois não. Suponho que na mochila está o dinheiro combinado e os todas as informações sobre o nosso amigo.

- Eu não tenho amigos.

- Foi apenas uma expressão, não se preocupe com isso. Não vou contar as cédulas aqui, confio que o senhor não vai querer me enganar, estou certo?

- Sim, claro. Mas posso fazer apenas uma pergunta?

- Pode - digo, lembrando que já havia me preparado para isso.

- O senhor não tem medo que eu seja da polícia e tenha armado tudo para prendê-lo?

- Nem um pouco.

- Por quê?

- Porque até agora somos apenas dois homens que trocaram e-mails, planejaram algo criminoso e se encontraram em um hotel. O senhor está me passando dinheiro e informações de um terceiro. - Todo bom escritor sabe pesquisar o material com que trabalha e, para esta nova história conhecer as leis penais foi essencial - Nada disso é crime no código penal. Se apenas pensar coisas erradas fosse crime não sobraria ninguém livre.

- Mas e o seu anúncio?

- Tampouco há algo errado. Ninguém pode provar que o anúncio é verdadeiro. Posso ser apenas um escritor de imaginação fértil e entediado ou uma pessoa com muito humor negro. E, supondo que o anúncio seja falso, nem mesmo posso ser acusado de estelionato ou fraude por prometer algo criminoso e não cumprir, já que a legislação penal isenta de pena quem se nega ou se arrepende de praticar crime antes de sua execução. E ainda há uma terceira hipótese.

- Qual?

- Eu posso ser um policial disfarçado. -  essa era a deixa que eu havia preparado para intimidar qualquer curioso.

- E você é?

- Hehehe, claro que não. Pode ficar tranquilo.

- Muito bom, seria complicado para mim se eu matasse um policial.

- ?

Ouço dois estampidos abafados por baixo da mesa e sinto o meu peito arder. Ele coloca a arma com silenciador calmamente sobre a mesa. O meu olhar é pura interrogação enquanto o ar começa a faltar. Os tiros me surpreenderam tanto que não tive tempo de esboçar reação alguma, nem mesmo um grito de dor. O outro se levanta, guardando a arma na mochila.

- Também sou um matador profissional e não poderia admitir concorrentes com ideias inteligentes como a sua. Anunciar nos classificados? Genial, eu nunca havia pensado nisso antes. Poderia ser ruim para os meus negócios um matador mais criativo que eu na área. Enfim, foi um prazer conhece-lo. Espero que me perdoe a grosseria, mas negócios são negócios. Adeus.

Penso em dizer que não sou seu concorrente, que ele acaba de matar um idiota inocente, mas a única coisa que sai da minha boca é um bocado de sangue. Ele se afasta enquanto minha vista escurece. Droga, morto em meu próprio plot point! Às vezes, é a própria obra que decide o destino do escritor.

Comentários

Postar um comentário

Isso aqui não é uma democracia. Portanto, escreva o que você quiser, mas eu publico somente os comentários que EU quiser.

Postagens mais visitadas deste blog

Expressões lá do Goiás (II): Cara lerda

Oração da Serenidade, de Reinhold Niebuhr

Destaques da 23ª semana de 2010