Cheia
(parte 3 de 4)
- E se eu disser que o seu companheiro de quarto é apenas uma ilusão criada pela sua mente?
- Impossível.
- E por quê?
- Zip!
- Provérbios dezoito dois.
- Hahahahaha.
- Senhores, senhores, por favor acalmem-se, todos tiveram a sua vez de falar, agora é a vez do senhor Ferdinando. E senhor Zair, já lhe avisei antes, por favor pare com esta brincadeira de colocar o dedo no meu ouvido ou será severamente punido.
- Zip!
Os olhos do homem de roupa e barba brancas paralisaram imediatamente o pequeno Zair, fazendo-o recolher-se a sua cadeira. Em seguida, o doutor fez o mesmo com todos os que se encontravam no pequeno círculo. Éramos quatro contra um, mas quem ousaria contestar a São Pedro? Não, ele não era o verdadeiro São Pedro, eu acho, mas o chamávamos assim pois era o responsável por julgar quem estava apto ou não a deixar aquele purgatório. O guardião das portas voltou a atenção para mim.
- Aonde paramos?
- Eu dizia que é impossível eu ter imaginado um companheiro de quarto.
- Mas pense bem, Ferdinando, o senhor está vendo aqui conosco o seu companheiro de quarto imaginário?
Olho para o lugar vazio ao meu lado na esperança que alguém surja espontaneamente dali. Mas o vazio sentado ao meu lado apenas aumenta o vazio em mim.
- Ele me contou a história que o trouxera aqui, com detalhes que eu não conseguiria imaginar sozinho: lugares, nomes, pessoas que desconheço. Me desculpe, doutor, mas não acredito na sua teoria.
- E quem mencionou teoria? Já ouviu falar em projeção? Trata-se de um mecanismo de defesa da mente em que o indivíduo vê as ações que praticou no passado como sendo de outras pessoas. O senhor já se perguntou por que ele lhe conta as histórias com tantos detalhes?
- Porque quer desabafar, oras! Quem, depois de estar isolado durante semanas não sente a necessidade de confessar todos os pecados ao primeiro ouvido atento que aparece?
- Tiago um quinze.
- Senhora Margarida, silêncio, por favor.
A mulher de cabelos desgrenhados, desde que entrara na sala só olhava para o chão e citava trechos bíblicos. Devia ser uma destas beatas que a fé cozinhara o cérebro. Na vez dela falar, apenas ergueu as mãos e orou em voz alta de olhos fechados. Tivemos que esperar alguns minutos até São Pedro cansar-se e mandá-la parar. Ameaçou tirar-lhe a Bíblia caso continuasse. É um método interessante o de tratar os pacientes com livros e depois tirá-los, como se a cura e o vício fossem a mesma coisa. Eu também tenho o meu livro e não o devolveria sob nenhuma ameaça.
- Peço para que reflita outro detalhe comigo, senhor Ferdinando: por que somente ele conta histórias para o senhor e nunca o inverso?
- Porque eu não quero falar.
- Mas quem, depois de estar isolado durante semanas não sente a necessidade de confessar os seus pecados ao primeiro ouvido atento que aparece?
- Sim, mas...
Droga, ele me pegou. Independente do que eu diga, o meio sorriso cínico dele já me dá por vencido. Mas eu sei que estou certo. Olho para os colegas, Zair fixo no vazio à frente como se a coisa mais interessante do universo acontecesse a dez centímetros de seu nariz, Margarida conversando silenciosa sabe-se lá com quem e o senhor Quiroga, que apenas dera risadas até o momento, babando enquanto tenta tocar o nariz com a ponta da língua.
- Mesmo que todos digam que ele é fruto da minha imaginação, eu ainda insistirei que ele existe.
- Romanos três quatro.
Olho para o livro de capa de couro preta que minha colega segura e reflito que se as palavras são capazes de dar segurança até aos mais fracos quanto mais aos lúcidos como eu. As palavras escritas e orais - do livro e de meu colega - têm aliviado a minha estadia aqui. Percebo que o doutor me vê olhando para a Bíblia. Maravilha.
- Me fale sobre o livro que você está lendo. Notei que não quis citar o título dele na carta que escreveu.
- Eu sabia que vocês iriam ler a carta e querer tomá-lo de mim.
- E se eu lhe disser que foi intencional deixarmos aquele livro específico se destacando em meio aos outros para que você o considerasse diferente, quando era exatamente o que pretendíamos? Além disso, você percebeu que o seu colega de quarto só apareceu depois que você começou a ler o livro? Você não admite que tanto o seu colega quanto o livro o têm ajudado a melhorar?
- O senhor está tentado me fazer falar qual é o livro e onde o escondi. Mas não vai conseguir.
- Hahahahaha.
A risada foi o sinal esperado para fazer Zair correr até o doutor e enfiar o dedo em seu ouvido.
- Zip!
O doutor levantou-se enfurecido. Vermelho, apontou o dedo ríspido para a cadeira, olhando como um Zeus de olhos carregados de raios para o pequeno verme humano diante dele.
- Zip! Pode fazer o que quiser, Zip! eu não tenho medo de você, sou um servo classe dois dos Anunnaki e desde que cheguei do planeta Nibiru desliguei todos os mecanismos de sensibilidade deste corpo. Podem me bater que não sentirei nada! Zip!
E era verdade. Pelo menos a parte da insensibilidade eu já presenciara, o pequeno costumava dar fortes encontrões nas paredes e continuava normalmente como se nada acontecera. Apesar de divertido, não duvido que a insistência naquela atitude para com o doutor o faria dormir com algumas contusões naquela noite. Como o dedo do doutor continuava apontado para a cadeira, o servo classe dois resolveu sentar-se ao meu lado. Mas tão logo o fez, voltou a fixar o vazio, desligando o restante das suas funções vitais.
- Eu não sei o que dizer, doutor, o seu tratamento mais parece querer confundir que ajudar. Não sei como serei curado pensando que criei um colega de quarto imaginário.
- Jeremias dezessete cinco.
- Isso mesmo minha zelosa senhora - disse uma voz destoante das demais, atrás de mim - e eu diria mais, só alguém com sérios problemas confiaria em tudo o que os médicos dizem. Afinal, por que eles extirpariam todos os nossos males se são estes que lhes dão o sustento?
Antes mesmo de ver quem falava eu já havia reconhecido a voz do senhor ****. Ele sentou-se na cadeira aonde Zair estivera anteriormente, ao lado do senhor Quiroga. O doutor não deve ter gostado da interferência de meu colega pois derrubou os argumentos que usava contra mim. Mas conseguiu disfarçar como se aquilo fosse acontecer a qualquer momento.
- Vejo que finalmente juntou-se a nós, senhor ****. A enfermaria tratou bem das queimaduras em suas mãos? Espero que não nos recrimine por tomarmos restrições adicionais para com o senhor a partir de agora.
- Não esperaria menos dos senhores.
Olhei para as mãos e os braços de meu colega completamente enrolados em faixas e gazes. Depois soube que em um descuido dos enfermeiros enquanto o senhor **** fumava um cigarro, este pegou alguns produtos de limpeza próximos e jogou-os no próprio corpo, ateando fogo em si mesmo em seguida. Embora as chamas fossem logo contidas, sofrera queimaduras leves nos membros superiores. Não sei por que tentara aquilo, mas desconfiava que estava relacionado com o final da sua história amorosa.
- Bem, já que temos mais um integrante no grupo e este interrompeu a conversa com o senhor Ferdinando, nada mais justo que passemos a palavra para ele. Senhor ****, diga-nos, há algo que deseje compartilhar conosco?
O meu colega deu um leve sorriso e piscou para mim em cumplicidade. Disse que contaria como conseguiu conquistar o coração da sua amada sujando as suas mãos de sangue.
“A primeira coisa que minha noiva Diana fez após saber que seu pai a prometera a mim foi me chamar para uma conversa particular sobre o nosso futuro. Ela revelou saber que eu gostava da irmã, Selene, e fez questão que eu soubesse que ela não fora consultada pelo pai antes dele oferecer a sua mão para mim. Contou que o pai lhe prometera nunca força-la a se casar com ninguém e que a quebra da promessa paterna não mudaria a preferência sexual não revelada da filha. Surpreso com as palavras de Diana, apenas disse-lhe que minha mãe gostava muito dela, ao que me respondeu que também apreciava a minha mãe como amiga, jamais sogra. E me fez sua proposta: se eu quisesse o fim daquele noivado tanto quanto ela, havia um plano que, se eu seguisse à risca, estaria noivo da senhorita Maan correta em pouco tempo. Concordei de imediato. Faria qualquer coisa por Selene. Diana contou que ela costumava caçar nas matas fechadas pra lá do rio, muitas vezes com o pai. Em uma destas caçadas noturnas, depararam-se com um animal desconhecido, esperto, matreiro, que atacava a caça que perseguiam, devorava-a e fugia antes deles chegarem. Haviam somente visto o vulto do animal, silencioso e que não deixava pegadas, mas parecia perigoso pelas carcaças abatidas que deixava. O senhor Maan tornou-se obcecado como Ismael e o animal desconhecido virou a sua baleia. A ideia de Diana era eu dar fim ao animal, com a ajuda dela, para que ofertando-o abatido ao sogro, este se sentiria derrotado por outro caçador e, reconhecendo-o como superior, lhe deveria um favor, não podendo negar ao genro o pedido de troca da noiva.”
“Era um plano simples e por isso bom. Apesar de eu não ser tão bom caçador como Diana, ela se dispôs a fazer a parte difícil e, independente de quem abatesse o animal, o crédito seria meu. Armamo-nos de espingardas certa noite e saímos, sem fornecer detalhes aos familiares. Atravessamos o rio. Andamos quilômetros guiados pelo instinto caçador de Diana. Ela brilhava quando passava pelas clareiras da mata. Parecia conhecer a floresta tão bem como se estivesse em casa. Depois de algumas horas rastreando pegadas e seguindo pistas, chegamos ao local em que o animal atacara pela última vez. Nos escondemos e esperamos. O tempo das tocaias é um dos mais lentos do universo, como se a própria vida fizesse uma pausa. Minutos viram horas e horas vidas. Foi quando escutamos barulhos de galhos e folhas. Algo se aproximava. Diana indicou o local que eu deveria apontar a espingarda enquanto ela daria a volta por trás e espantaria o animal para a armadilha. Minha respiração ofegava e as mãos tremiam. Comecei a suar e em segundos encharquei a camisa. Se eu errasse o tiro o animal poderia me atacar. A minha imaginação criava os monstros mais fantásticos com as habilidades mais improváveis. Foi quando o vulto surgiu e avançou rápido na minha direção. O estampido quebrou o silêncio do vale. O animal tombou. Ainda tremendo, com um suspiro de alívio no peito, me aproximei cautelosamente, chegando ao mesmo tempo que Diana. Iluminei o vulto caído. Era o senhor Maan.”
“Eu nunca soube se Diana planejara tudo maquiavelicamente ou se fora mero acidente. Preferi não pensar no assunto. Nunca mais conversamos sobre o animal desconhecido. Já era problemático o suficiente ter que carregar a morte de uma pessoa em minha consciência. Culpar Diana pelo meu erro seria uma saída covarde. Eu matara o meu sogro. Acidentes de caça eram comuns na região e o delegado acabou arquivando o caso, com o testemunho de Diana a meu favor. Após prometer cuidar da viúva e das duas filhas, me pareceu que a família também acabou aceitando a fatalidade. Enterramos o senhor Maan no pequeno cemitério da fazenda. A viúva recebeu de bom grado o cancelamento de meu noivado com a filha. Preferi respeitar o período de luto e não revelar as minhas intenções para com Selena. A senhora Maan percebia o arrependimento e a dor em meus olhos e acabou me perdoando. Porém, Selena reagiu diferente.”
“A mais nova dos Maan, sempre tímida e introvertida passou a me olhar com uma raiva mortífera. Nada me machucava mais, mas eu a compreendia. Ela precisava descarregar em alguém. Diana prometeu apaziguá-la. Ela e a mãe pareciam estar do meu lado. Um dia, quando saía para a cidade, Selena me interpelou dizendo que iria comigo. Assenti. Ela sentou-se ao meu lado na charrete. Seria uma viagem de três dias. Uma longa viagem. Uma viagem onde ela veio a despejar toda a sua mágoa, ódio e rancor acumulados sobre mim. Brigamos por um bom trecho do caminho. Ela me bateu. Me arranhou. Mas também foi nesta viagem em que Selena me deu o primeiro beijo.”
- Hahahahaha.
- Cânticos de Salomão oito, seis e sete.
Enquanto o doutor tentava conter o abobado do senhor Quiroga que agora pulava no centro da roda batendo palmas, Zair, que estivera calado até o momento, se aproximou de mim e perguntou:
- O senhor sabe como os servos classe dois do planeta Nibiru fazem amor?
- Não faço a mínima ideia - respondi.
Ele levantou-se rapidamente, foi até o doutor e colocou o dedo em seu ouvido, disse Zip! e depois escapou correndo realizado pela sala.
- E se eu disser que o seu companheiro de quarto é apenas uma ilusão criada pela sua mente?
- Impossível.
- E por quê?
- Zip!
- Provérbios dezoito dois.
- Hahahahaha.
- Senhores, senhores, por favor acalmem-se, todos tiveram a sua vez de falar, agora é a vez do senhor Ferdinando. E senhor Zair, já lhe avisei antes, por favor pare com esta brincadeira de colocar o dedo no meu ouvido ou será severamente punido.
- Zip!
Os olhos do homem de roupa e barba brancas paralisaram imediatamente o pequeno Zair, fazendo-o recolher-se a sua cadeira. Em seguida, o doutor fez o mesmo com todos os que se encontravam no pequeno círculo. Éramos quatro contra um, mas quem ousaria contestar a São Pedro? Não, ele não era o verdadeiro São Pedro, eu acho, mas o chamávamos assim pois era o responsável por julgar quem estava apto ou não a deixar aquele purgatório. O guardião das portas voltou a atenção para mim.
- Aonde paramos?
- Eu dizia que é impossível eu ter imaginado um companheiro de quarto.
- Mas pense bem, Ferdinando, o senhor está vendo aqui conosco o seu companheiro de quarto imaginário?
Olho para o lugar vazio ao meu lado na esperança que alguém surja espontaneamente dali. Mas o vazio sentado ao meu lado apenas aumenta o vazio em mim.
- Ele me contou a história que o trouxera aqui, com detalhes que eu não conseguiria imaginar sozinho: lugares, nomes, pessoas que desconheço. Me desculpe, doutor, mas não acredito na sua teoria.
- E quem mencionou teoria? Já ouviu falar em projeção? Trata-se de um mecanismo de defesa da mente em que o indivíduo vê as ações que praticou no passado como sendo de outras pessoas. O senhor já se perguntou por que ele lhe conta as histórias com tantos detalhes?
- Porque quer desabafar, oras! Quem, depois de estar isolado durante semanas não sente a necessidade de confessar todos os pecados ao primeiro ouvido atento que aparece?
- Tiago um quinze.
- Senhora Margarida, silêncio, por favor.
A mulher de cabelos desgrenhados, desde que entrara na sala só olhava para o chão e citava trechos bíblicos. Devia ser uma destas beatas que a fé cozinhara o cérebro. Na vez dela falar, apenas ergueu as mãos e orou em voz alta de olhos fechados. Tivemos que esperar alguns minutos até São Pedro cansar-se e mandá-la parar. Ameaçou tirar-lhe a Bíblia caso continuasse. É um método interessante o de tratar os pacientes com livros e depois tirá-los, como se a cura e o vício fossem a mesma coisa. Eu também tenho o meu livro e não o devolveria sob nenhuma ameaça.
- Peço para que reflita outro detalhe comigo, senhor Ferdinando: por que somente ele conta histórias para o senhor e nunca o inverso?
- Porque eu não quero falar.
- Mas quem, depois de estar isolado durante semanas não sente a necessidade de confessar os seus pecados ao primeiro ouvido atento que aparece?
- Sim, mas...
Droga, ele me pegou. Independente do que eu diga, o meio sorriso cínico dele já me dá por vencido. Mas eu sei que estou certo. Olho para os colegas, Zair fixo no vazio à frente como se a coisa mais interessante do universo acontecesse a dez centímetros de seu nariz, Margarida conversando silenciosa sabe-se lá com quem e o senhor Quiroga, que apenas dera risadas até o momento, babando enquanto tenta tocar o nariz com a ponta da língua.
- Mesmo que todos digam que ele é fruto da minha imaginação, eu ainda insistirei que ele existe.
- Romanos três quatro.
Olho para o livro de capa de couro preta que minha colega segura e reflito que se as palavras são capazes de dar segurança até aos mais fracos quanto mais aos lúcidos como eu. As palavras escritas e orais - do livro e de meu colega - têm aliviado a minha estadia aqui. Percebo que o doutor me vê olhando para a Bíblia. Maravilha.
- Me fale sobre o livro que você está lendo. Notei que não quis citar o título dele na carta que escreveu.
- Eu sabia que vocês iriam ler a carta e querer tomá-lo de mim.
- E se eu lhe disser que foi intencional deixarmos aquele livro específico se destacando em meio aos outros para que você o considerasse diferente, quando era exatamente o que pretendíamos? Além disso, você percebeu que o seu colega de quarto só apareceu depois que você começou a ler o livro? Você não admite que tanto o seu colega quanto o livro o têm ajudado a melhorar?
- O senhor está tentado me fazer falar qual é o livro e onde o escondi. Mas não vai conseguir.
- Hahahahaha.
A risada foi o sinal esperado para fazer Zair correr até o doutor e enfiar o dedo em seu ouvido.
- Zip!
O doutor levantou-se enfurecido. Vermelho, apontou o dedo ríspido para a cadeira, olhando como um Zeus de olhos carregados de raios para o pequeno verme humano diante dele.
- Zip! Pode fazer o que quiser, Zip! eu não tenho medo de você, sou um servo classe dois dos Anunnaki e desde que cheguei do planeta Nibiru desliguei todos os mecanismos de sensibilidade deste corpo. Podem me bater que não sentirei nada! Zip!
E era verdade. Pelo menos a parte da insensibilidade eu já presenciara, o pequeno costumava dar fortes encontrões nas paredes e continuava normalmente como se nada acontecera. Apesar de divertido, não duvido que a insistência naquela atitude para com o doutor o faria dormir com algumas contusões naquela noite. Como o dedo do doutor continuava apontado para a cadeira, o servo classe dois resolveu sentar-se ao meu lado. Mas tão logo o fez, voltou a fixar o vazio, desligando o restante das suas funções vitais.
- Eu não sei o que dizer, doutor, o seu tratamento mais parece querer confundir que ajudar. Não sei como serei curado pensando que criei um colega de quarto imaginário.
- Jeremias dezessete cinco.
- Isso mesmo minha zelosa senhora - disse uma voz destoante das demais, atrás de mim - e eu diria mais, só alguém com sérios problemas confiaria em tudo o que os médicos dizem. Afinal, por que eles extirpariam todos os nossos males se são estes que lhes dão o sustento?
Antes mesmo de ver quem falava eu já havia reconhecido a voz do senhor ****. Ele sentou-se na cadeira aonde Zair estivera anteriormente, ao lado do senhor Quiroga. O doutor não deve ter gostado da interferência de meu colega pois derrubou os argumentos que usava contra mim. Mas conseguiu disfarçar como se aquilo fosse acontecer a qualquer momento.
- Vejo que finalmente juntou-se a nós, senhor ****. A enfermaria tratou bem das queimaduras em suas mãos? Espero que não nos recrimine por tomarmos restrições adicionais para com o senhor a partir de agora.
- Não esperaria menos dos senhores.
Olhei para as mãos e os braços de meu colega completamente enrolados em faixas e gazes. Depois soube que em um descuido dos enfermeiros enquanto o senhor **** fumava um cigarro, este pegou alguns produtos de limpeza próximos e jogou-os no próprio corpo, ateando fogo em si mesmo em seguida. Embora as chamas fossem logo contidas, sofrera queimaduras leves nos membros superiores. Não sei por que tentara aquilo, mas desconfiava que estava relacionado com o final da sua história amorosa.
- Bem, já que temos mais um integrante no grupo e este interrompeu a conversa com o senhor Ferdinando, nada mais justo que passemos a palavra para ele. Senhor ****, diga-nos, há algo que deseje compartilhar conosco?
O meu colega deu um leve sorriso e piscou para mim em cumplicidade. Disse que contaria como conseguiu conquistar o coração da sua amada sujando as suas mãos de sangue.
“A primeira coisa que minha noiva Diana fez após saber que seu pai a prometera a mim foi me chamar para uma conversa particular sobre o nosso futuro. Ela revelou saber que eu gostava da irmã, Selene, e fez questão que eu soubesse que ela não fora consultada pelo pai antes dele oferecer a sua mão para mim. Contou que o pai lhe prometera nunca força-la a se casar com ninguém e que a quebra da promessa paterna não mudaria a preferência sexual não revelada da filha. Surpreso com as palavras de Diana, apenas disse-lhe que minha mãe gostava muito dela, ao que me respondeu que também apreciava a minha mãe como amiga, jamais sogra. E me fez sua proposta: se eu quisesse o fim daquele noivado tanto quanto ela, havia um plano que, se eu seguisse à risca, estaria noivo da senhorita Maan correta em pouco tempo. Concordei de imediato. Faria qualquer coisa por Selene. Diana contou que ela costumava caçar nas matas fechadas pra lá do rio, muitas vezes com o pai. Em uma destas caçadas noturnas, depararam-se com um animal desconhecido, esperto, matreiro, que atacava a caça que perseguiam, devorava-a e fugia antes deles chegarem. Haviam somente visto o vulto do animal, silencioso e que não deixava pegadas, mas parecia perigoso pelas carcaças abatidas que deixava. O senhor Maan tornou-se obcecado como Ismael e o animal desconhecido virou a sua baleia. A ideia de Diana era eu dar fim ao animal, com a ajuda dela, para que ofertando-o abatido ao sogro, este se sentiria derrotado por outro caçador e, reconhecendo-o como superior, lhe deveria um favor, não podendo negar ao genro o pedido de troca da noiva.”
“Era um plano simples e por isso bom. Apesar de eu não ser tão bom caçador como Diana, ela se dispôs a fazer a parte difícil e, independente de quem abatesse o animal, o crédito seria meu. Armamo-nos de espingardas certa noite e saímos, sem fornecer detalhes aos familiares. Atravessamos o rio. Andamos quilômetros guiados pelo instinto caçador de Diana. Ela brilhava quando passava pelas clareiras da mata. Parecia conhecer a floresta tão bem como se estivesse em casa. Depois de algumas horas rastreando pegadas e seguindo pistas, chegamos ao local em que o animal atacara pela última vez. Nos escondemos e esperamos. O tempo das tocaias é um dos mais lentos do universo, como se a própria vida fizesse uma pausa. Minutos viram horas e horas vidas. Foi quando escutamos barulhos de galhos e folhas. Algo se aproximava. Diana indicou o local que eu deveria apontar a espingarda enquanto ela daria a volta por trás e espantaria o animal para a armadilha. Minha respiração ofegava e as mãos tremiam. Comecei a suar e em segundos encharquei a camisa. Se eu errasse o tiro o animal poderia me atacar. A minha imaginação criava os monstros mais fantásticos com as habilidades mais improváveis. Foi quando o vulto surgiu e avançou rápido na minha direção. O estampido quebrou o silêncio do vale. O animal tombou. Ainda tremendo, com um suspiro de alívio no peito, me aproximei cautelosamente, chegando ao mesmo tempo que Diana. Iluminei o vulto caído. Era o senhor Maan.”
“Eu nunca soube se Diana planejara tudo maquiavelicamente ou se fora mero acidente. Preferi não pensar no assunto. Nunca mais conversamos sobre o animal desconhecido. Já era problemático o suficiente ter que carregar a morte de uma pessoa em minha consciência. Culpar Diana pelo meu erro seria uma saída covarde. Eu matara o meu sogro. Acidentes de caça eram comuns na região e o delegado acabou arquivando o caso, com o testemunho de Diana a meu favor. Após prometer cuidar da viúva e das duas filhas, me pareceu que a família também acabou aceitando a fatalidade. Enterramos o senhor Maan no pequeno cemitério da fazenda. A viúva recebeu de bom grado o cancelamento de meu noivado com a filha. Preferi respeitar o período de luto e não revelar as minhas intenções para com Selena. A senhora Maan percebia o arrependimento e a dor em meus olhos e acabou me perdoando. Porém, Selena reagiu diferente.”
“A mais nova dos Maan, sempre tímida e introvertida passou a me olhar com uma raiva mortífera. Nada me machucava mais, mas eu a compreendia. Ela precisava descarregar em alguém. Diana prometeu apaziguá-la. Ela e a mãe pareciam estar do meu lado. Um dia, quando saía para a cidade, Selena me interpelou dizendo que iria comigo. Assenti. Ela sentou-se ao meu lado na charrete. Seria uma viagem de três dias. Uma longa viagem. Uma viagem onde ela veio a despejar toda a sua mágoa, ódio e rancor acumulados sobre mim. Brigamos por um bom trecho do caminho. Ela me bateu. Me arranhou. Mas também foi nesta viagem em que Selena me deu o primeiro beijo.”
- Hahahahaha.
- Cânticos de Salomão oito, seis e sete.
Enquanto o doutor tentava conter o abobado do senhor Quiroga que agora pulava no centro da roda batendo palmas, Zair, que estivera calado até o momento, se aproximou de mim e perguntou:
- O senhor sabe como os servos classe dois do planeta Nibiru fazem amor?
- Não faço a mínima ideia - respondi.
Ele levantou-se rapidamente, foi até o doutor e colocou o dedo em seu ouvido, disse Zip! e depois escapou correndo realizado pela sala.
(Continua...)
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