Sutil aridez


Eu entrei pela porta. Uma voz como trovão falava de bênçãos e maldições futuras. E os que lhe escutavam emudecidos repetiam invocações guardadas e aguardadas para os momentos certos. O orador apontava o dedo para os céus, depois para a multidão e novamente para os céus como um pêndulo na mão de um hipnotizador. O desfile de palavras marchava de sua boca afetando indelevelmente os ouvidos atentos e os corações suplicantes, que sugavam e reagiam de acordo com o toque do tambor: faziam-se abençoadas, doces, solidárias, provocativas, estimulantes, arrebatadoras, pedintes, suplicantes, exigentes, ameaçadoras, aterrorizantes, ferozes, maldizentes. Receberiam as coisas pelas quais gemiam somente aqueles que primeiro sacrificassem a décima parte de si. Mensalmente. E com a única garantia de não obterem respostas por pouco se imolarem. Como não era o que eu procurava, então saí e continuei caminhando.

Foi quando entrei pela porta. Um aglomerado de velhos e velhas roncava ou contava bolinhas de madeira ou apontava para mim os seus narizes, julgando-me de alto a baixo, franzindo o sobrolho. Um velho mais velho que os demais murmurava ladainhas e repetia rituais sem sentido usando espalhafatosas vestes estrangeiras. Avisaram que tudo era mistério e que eu só compreenderia se ali dentro morresse. Aos poucos, como os demais. Resignar-se desta vida para ganhar-me outra melhor. Mas não era o que eu procurava, então saí e continuei caminhando.

Então eu entrei pela porta. O som iluminado e a música brilhante preenchiam todo o grande salão e além. A emoção contagiava o ar. Pessoas choravam, pessoas desmaiavam, pessoas erguiam suas vozes e mãos em uníssono. Os poucos que me viram chegar sorriram sorrisos de boas vindas ensaiadas especialmente para as novas faces. A melodia falava que os meus atos eram erros e os meus erros, imperdoáveis. A minha saída seria virar as costas ao mundo que lá fora existia. E olhar as pessoas que continuavam lá como adversários e opositores. Não era o que eu procurava, então saí e continuei caminhando.

Cansado de caminhar, sentei-me em um banco e li o livro que carregava em meu bolso – Eis que vêm os dias em que enviarei fome e sede sobre a terra, não de pão, nem de água, mas de palavras – e folheei mais adiante – Se alguém tem sede, venha a mim e beba – e finalizei na última página – e quem tem sede, venha; quem quiser, receba de graça a água da vida. Foi quando lágrimas brotaram dos meus olhos e percebi que apesar de toda a minha busca, continuava com a boca seca.

Texto escrito para o Duelo de Escritores de 01.02.2011, sob o tema "falta de água".

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