OI RATO OTÁRIO
Parte I
A imaginação pode aparecer como um roedor cruel. Foi o que descobriu o Senhor M… após alguns contratempos vividos em setembro passado. Avesso ao contato com a sociedade, principalmente com as pessoas fúteis e superficiais, estabeleceu como meta nunca sair de casa. Compositor por profissão, ele ansiava, ou melhor, necessitava, de absoluto silêncio para deixar a sua arte fluir naturalmente. Por isso, vivia em um casebre modesto e de bom gosto, afastado das vias movimentadas, colégios, igrejas, praças ou qualquer outra aglomeração humana moderna que lhe roubasse a atenção. O Sr. M. tinha o tempo contra ele, precisava finalizar a melodia para letra que um cantor famoso lhe encomendara três meses atrás. Se trabalhasse com esmero, teria um bom retorno financeiro. Mas se tivesse um lapso de genialidade, teria o seu nome imortalizado. Enclausurado do mundo, esqueceu-se somente de avisar ao mundo para deixá-lo só.
Certa noite, acordou com um barulho ensurdecedor dentro do quarto. Eram dentes ou garras arranhando a madeira do guarda-roupa. Deu um pulo, acendeu as luzes e parou, com o coração disparado, tentando ver ou ouvir alguma coisa. Não havia barulho. Não havia movimento. Será que tivera um pesadelo? Ou seria um roedor? Estaria a casa assombrada por fantasmas? Ainda zonzo de sono, sentou-se na cama esperando o coração e a respiração acalmarem-se. Dizia para si mesmo que não temia o que fosse o motivo do barulho, e quando percebeu a sua agitação interior justificou-se que o corpo tende a ter reações involuntárias primitivas, independentes do intelecto.
Percebeu um pequeno vulto correr para a porta. Um borrão. Teria imaginado aquilo? Era uma peça que o sono lhe pregava? Imediatamente, correu para a cozinha e acendeu a luz. Bem no meio do cômodo, o intruso parou e ficou lhe observando. O Sr. M. rapidamente pegou uma vassoura e passou a tentar acertá-lo. Foi uma batalha de titãs. Quando o Sr. M. pensava ter encurralado o pequeno, este pulava, guinchava e corria desesperado como se a sua vida dependesse disso. Ao fim de uma hora, foi encurralado em um dos cantos da sala, totalmente desprovido de móveis, e acabou sucumbindo após duas ou três vassouradas. Ofegante, o Sr. M. agachou-se próximo ao corpo inerte do adversário. Ainda soltava pequenos espasmos, tinha uma pelugem cinzenta brilhante e uniforme. Um pouco de sangue escorria pela boca. Estava gordo, talvez fosse fêmea e estivesse prenha, mas o Sr. M. não quis conferir. Colocou dois sacos plásticos em sua mão tal qual uma luva, pegou o animal pela cauda e levou-o até a rua. O caçador voltava da savana exibindo a presa abatida. Mas àquela hora, o céu ainda escuro, não havia ninguém acordado para compartilhar sua vitória. Depositou o bicho com cuidado próximo ao meio-fio, pensando fazer um agrado aos gatos da região. Os efeitos pós-adrenalina são calmantes. Começaram a atuar no organismo do Sr. M. assim que ele deitou-se. Dormiu como o chefe de uma tribo Neandertal, em sua caverna seca, quente e sem ratos.
Na manhã seguinte, foi a correspondência que o acordou. Telegramas precisam de assinatura de recebimento. Caminhou em seu roupão até a rua e, enquanto assinava seu nome no papel que a moça de amarelo e azul lhe estendia, olhou para o local que há poucas horas jazia um pequeno cadáver e que agora estava limpo. O crime perfeito não deixa vestígios. O telegrama, óbvio, era do cantor. URGENTE. INFORME ANDAMENTO MELODIA. PRAZO TERMINA EM 15D. AGUARDO CONTATO. Palavras cuidadosamente escolhidas para soarem como uma ameaça velada. Mas não atrapalharam a sua disposição. Sentia-se confiante e este sentimento influenciou o trabalho. O dia tornou-se tão proveitoso que resolveu deixar o refrão para o dia seguinte. Comemorou antecipadamente abrindo uma garrafa de vinho. Sentia-se o rei do seu castelo.
A bebida o fez deitar-se cedo. Acordou de madrugada com a mesma barulheira da noite anterior. Levantou assustado, topou o dedinho do pé em uma cadeira que havia esquecido no caminho. Praguejou no escuro. Continuou praguejando na claridade. Fora isso, reinavam o silêncio e a imobilidade do ambiente ao seu redor. Não poderia ser o mesmo rato. Ratos fantasmas não existem. Seria algum companheiro procurando pelo parceiro desaparecido? Os ratos andam em bando? Desta vez, resolveu que não iria esperar. Determinado, pegou a vassoura e partiu para o ataque. Arrastou guarda-roupas, cama e um baú velho. Nada. Passou para a cozinha. Geladeira, fogão, armário. Nada. Chegou à sala. Teclado, computador, impressora, mesa de som, caixa de samplers. Nada. Teria sido a sua imaginação desta vez? Riu de si mesmo, que idiota. Perdera grande parte da noite em busca de nada. Voltou para a cama. Vinte minutos depois, quando pegava no sono ouviu pequenos passinhos vindos da cozinha. Escutou uma sacola plástica sendo mexida. O silêncio absoluto da noite intensifica os menores ruídos. Escuta-se a respiração, os batimentos cardíacos, os pensamentos. E o Sr. M. escutava estalos na cozinha. Levantou correndo, acendeu a luz da cozinha e ficou parado durante vários minutos, tentando escutar algo. Mas os ruídos parecem gostar mais do escuro. Voltou novamente para a cama, desta vez levando a vassoura consigo. Seria mais ágil da próxima vez. Ficou um longo tempo no escuro, deitado, ouvido atento. Os ruídos só voltaram quando o sono o estava dominando. O barulho agora nitidamente estava no quarto. Não acendeu a luz. Sentou-se na cama e tentou seguir o som com os olhos. Vinha do teto, passos caminhavam no forro de madeira. A dimensão que a sua mente criava do animal era a de um bicho bem maior que aquele que matara. Acendeu a luz. O barulho persistiu. Bateu com o cabo da vassoura no forro. O andante parou. Bateu outra vez. Andou alguns passos. Bateu uma terceira, quarta, quinta, infinitas vezes, mas o efeito era inofensivo. O Sr. M. estava incapacitado. O inimigo estava inacessível. Voltou para o quarto, fechou a porta e a janela, mesmo com calor elevado. Mas sentia repulsa só de imaginar ser acordado por um rato em cima da cama. Pareceu ouvir estalos no quarto. Mas não era possível que ele estivesse ali dentro. Seria apenas impressão da sua imaginação influenciada pela ansiedade. O menor barulho o incomodava e se transformava em motivo para não dormir. Semidesperto, olhou para a janela ao lado da cama e viu o pequeno vulto caminhar pelo vidro. Estaria andando pelo lado de dentro ou de fora? O desespero cresceu até se tornar um horror tamanho que, quando o vulto começou a dar pequenas batidas no vidro, o Sr. M. levantou-se e de um só pulo e acendeu a luz. Na janela, não havia sinal de roedor algum. Tentou dormir, mas quando quase atingia o sono, algum som acordava-o assustado. A noite toda foi assim. O pouco que o Sr. M. dormiu, dormiu mal.
Arrastou-se ao longo do dia seguinte. O sono e a raiva o impediam de trabalhar. O calor não o deixava descansar durante o dia. Ligou para o velho que lhe alugara a casa. Perguntou se conhecia alguma empresa de dedetização. Compra Matarrato que ele resolve o seu problema, foi a resposta que escutou. O Sr. M. costumava fazer as compras uma vez só por mês. Não era do tipo que saía todos os dias. Como tinha tudo o que precisava em casa, resolveu esperar, talvez o intruso se cansou dele e já tenha ido embora.
Não aconteceu. Novamente, enclausurado em seu próprio quarto e suando em bicas, acordou com o estrondo no forro. Não eram apenas quatro e sim mil patas. O teto parecia que iria despencar a qualquer momento. Era algum tipo de invasão? Será que ele matara algum líder dos roedores e eles agora o estavam perseguindo? Os barulhos cresceram na cozinha. Panelas caíam. Pratos quebravam. A sorte é que havia fechado as persianas da janela, pois a saraivada de arranhados e guinchos que acometeu contra ela não seria suportada somente pelos vidros. Totalmente horrorizado, cobriu-se com o cobertor. Suava agora não pelo calor, mas pelo medo. Eles invadiriam o seu quarto, o devorariam vivo até os ossos e não sobraria nada para contar a história. Tanto terror o deixou em um estado catatônico, não se importando mais com o que acontecesse. Não dormiu, porém também não parecia estar acordado. Quando o dia amanheceu, caiu em si e percebeu que o barulho cessara. Tentou localizar algum ruído. Nada.
Abriu a porta do quarto e o que viu foi destruição total. Na cozinha, os alimentos estavam todos perdidos. O cheiro forte de urina era insuportável. O chão estava infestado de pequenos bastonetes pretos com a ponta branca. Pegou um deles com um papel. Eram fezes. Foi quando se lembrou do seu trabalho. Correu para a sala e nada ali lembrava vagamente um aparelho que funcionasse. Estava mais para sucata, com fios retorcidos, vidros quebrados e tudo infectado pelo forte odor de urina. Todo o seu arquivo estava destruído. Ainda poderia recuperar pela memória algumas de suas criações, como a em que estivera trabalhando recentemente, mas seria um trabalho árduo. E o prejuízo, considerável. Aquilo foi a gota d’água. Era guerra. Limpou o melhor que pode a casa e correu para o mercado, onde comprou todo o estoque de Matarrato. O rótulo de cores berrantes prometia extermínio imediato, logo acima da caveira sorridente. As caixas traziam pacotinhos com granulados cor-de-rosa. Com a ajuda de uma escada velha, espalhou os pacotes por todo o forro, pelos cômodos, pelo quintal. A vingança é um prato que não se come, mas se prepara com todo o carinho para que o inimigo coma. De preferência, com veneno. Resolveu passar a noite fora, e quando o dia terminou, trancou a casa e saiu. Foi para um bar em que tocava música ao vivo. Pediu uísque e ficou ali até ser o último freguês, com a aurora despontando. Seus pensamentos eram um só, agora era uma questão de tempo para voltar a sua rotina.
De volta ao lar, percebeu que o amanhecer trazia um ar de tranquilidade a casa. Pareciam duas casas distintas, uma diurna, tranquila, suave e aconchegante e outra, noturna, amedrontadora, perigosa e fatigante. Apesar de procurar, não encontrou sinal dos pacotinhos cor-de-rosa. Todos haviam desaparecido. Enfim, havia vencido a guerra, mesmo perdendo algumas batalhas. Retomara o controle do castelo.
Não houve ruídos pelas próximas noites, e o Sr. M. pode colocar em dia todo o sono perdido. Também conseguiu, após comprar equipamentos novos, refazer parte do trabalho perdido. Tudo parecia ter retornado à normalidade quando, em uma tarde de sol, começou a sentir um cheiro putrefato. Não sabia exatamente de onde vinha, mas o sol só fazia aumentar o fedor. Estava no quarto, na cozinha, na sala, onde quer que fosse, cada vez mais forte. Passou a sentir o fedor impregnado a casa, os móveis, os objetos e até a ele mesmo. Viver ali era impossível, quanto mais trabalhar. Teria de abandonar a casa, se quisesse continuar respirando. E se quisesse finalizar o seu trabalho. Havia sido derrotado pelos mortos.
A imaginação pode aparecer como um roedor cruel. Foi o que descobriu o Senhor M… após alguns contratempos vividos em setembro passado. Avesso ao contato com a sociedade, principalmente com as pessoas fúteis e superficiais, estabeleceu como meta nunca sair de casa. Compositor por profissão, ele ansiava, ou melhor, necessitava, de absoluto silêncio para deixar a sua arte fluir naturalmente. Por isso, vivia em um casebre modesto e de bom gosto, afastado das vias movimentadas, colégios, igrejas, praças ou qualquer outra aglomeração humana moderna que lhe roubasse a atenção. O Sr. M. tinha o tempo contra ele, precisava finalizar a melodia para letra que um cantor famoso lhe encomendara três meses atrás. Se trabalhasse com esmero, teria um bom retorno financeiro. Mas se tivesse um lapso de genialidade, teria o seu nome imortalizado. Enclausurado do mundo, esqueceu-se somente de avisar ao mundo para deixá-lo só.
Certa noite, acordou com um barulho ensurdecedor dentro do quarto. Eram dentes ou garras arranhando a madeira do guarda-roupa. Deu um pulo, acendeu as luzes e parou, com o coração disparado, tentando ver ou ouvir alguma coisa. Não havia barulho. Não havia movimento. Será que tivera um pesadelo? Ou seria um roedor? Estaria a casa assombrada por fantasmas? Ainda zonzo de sono, sentou-se na cama esperando o coração e a respiração acalmarem-se. Dizia para si mesmo que não temia o que fosse o motivo do barulho, e quando percebeu a sua agitação interior justificou-se que o corpo tende a ter reações involuntárias primitivas, independentes do intelecto.
Percebeu um pequeno vulto correr para a porta. Um borrão. Teria imaginado aquilo? Era uma peça que o sono lhe pregava? Imediatamente, correu para a cozinha e acendeu a luz. Bem no meio do cômodo, o intruso parou e ficou lhe observando. O Sr. M. rapidamente pegou uma vassoura e passou a tentar acertá-lo. Foi uma batalha de titãs. Quando o Sr. M. pensava ter encurralado o pequeno, este pulava, guinchava e corria desesperado como se a sua vida dependesse disso. Ao fim de uma hora, foi encurralado em um dos cantos da sala, totalmente desprovido de móveis, e acabou sucumbindo após duas ou três vassouradas. Ofegante, o Sr. M. agachou-se próximo ao corpo inerte do adversário. Ainda soltava pequenos espasmos, tinha uma pelugem cinzenta brilhante e uniforme. Um pouco de sangue escorria pela boca. Estava gordo, talvez fosse fêmea e estivesse prenha, mas o Sr. M. não quis conferir. Colocou dois sacos plásticos em sua mão tal qual uma luva, pegou o animal pela cauda e levou-o até a rua. O caçador voltava da savana exibindo a presa abatida. Mas àquela hora, o céu ainda escuro, não havia ninguém acordado para compartilhar sua vitória. Depositou o bicho com cuidado próximo ao meio-fio, pensando fazer um agrado aos gatos da região. Os efeitos pós-adrenalina são calmantes. Começaram a atuar no organismo do Sr. M. assim que ele deitou-se. Dormiu como o chefe de uma tribo Neandertal, em sua caverna seca, quente e sem ratos.
Na manhã seguinte, foi a correspondência que o acordou. Telegramas precisam de assinatura de recebimento. Caminhou em seu roupão até a rua e, enquanto assinava seu nome no papel que a moça de amarelo e azul lhe estendia, olhou para o local que há poucas horas jazia um pequeno cadáver e que agora estava limpo. O crime perfeito não deixa vestígios. O telegrama, óbvio, era do cantor. URGENTE. INFORME ANDAMENTO MELODIA. PRAZO TERMINA EM 15D. AGUARDO CONTATO. Palavras cuidadosamente escolhidas para soarem como uma ameaça velada. Mas não atrapalharam a sua disposição. Sentia-se confiante e este sentimento influenciou o trabalho. O dia tornou-se tão proveitoso que resolveu deixar o refrão para o dia seguinte. Comemorou antecipadamente abrindo uma garrafa de vinho. Sentia-se o rei do seu castelo.
A bebida o fez deitar-se cedo. Acordou de madrugada com a mesma barulheira da noite anterior. Levantou assustado, topou o dedinho do pé em uma cadeira que havia esquecido no caminho. Praguejou no escuro. Continuou praguejando na claridade. Fora isso, reinavam o silêncio e a imobilidade do ambiente ao seu redor. Não poderia ser o mesmo rato. Ratos fantasmas não existem. Seria algum companheiro procurando pelo parceiro desaparecido? Os ratos andam em bando? Desta vez, resolveu que não iria esperar. Determinado, pegou a vassoura e partiu para o ataque. Arrastou guarda-roupas, cama e um baú velho. Nada. Passou para a cozinha. Geladeira, fogão, armário. Nada. Chegou à sala. Teclado, computador, impressora, mesa de som, caixa de samplers. Nada. Teria sido a sua imaginação desta vez? Riu de si mesmo, que idiota. Perdera grande parte da noite em busca de nada. Voltou para a cama. Vinte minutos depois, quando pegava no sono ouviu pequenos passinhos vindos da cozinha. Escutou uma sacola plástica sendo mexida. O silêncio absoluto da noite intensifica os menores ruídos. Escuta-se a respiração, os batimentos cardíacos, os pensamentos. E o Sr. M. escutava estalos na cozinha. Levantou correndo, acendeu a luz da cozinha e ficou parado durante vários minutos, tentando escutar algo. Mas os ruídos parecem gostar mais do escuro. Voltou novamente para a cama, desta vez levando a vassoura consigo. Seria mais ágil da próxima vez. Ficou um longo tempo no escuro, deitado, ouvido atento. Os ruídos só voltaram quando o sono o estava dominando. O barulho agora nitidamente estava no quarto. Não acendeu a luz. Sentou-se na cama e tentou seguir o som com os olhos. Vinha do teto, passos caminhavam no forro de madeira. A dimensão que a sua mente criava do animal era a de um bicho bem maior que aquele que matara. Acendeu a luz. O barulho persistiu. Bateu com o cabo da vassoura no forro. O andante parou. Bateu outra vez. Andou alguns passos. Bateu uma terceira, quarta, quinta, infinitas vezes, mas o efeito era inofensivo. O Sr. M. estava incapacitado. O inimigo estava inacessível. Voltou para o quarto, fechou a porta e a janela, mesmo com calor elevado. Mas sentia repulsa só de imaginar ser acordado por um rato em cima da cama. Pareceu ouvir estalos no quarto. Mas não era possível que ele estivesse ali dentro. Seria apenas impressão da sua imaginação influenciada pela ansiedade. O menor barulho o incomodava e se transformava em motivo para não dormir. Semidesperto, olhou para a janela ao lado da cama e viu o pequeno vulto caminhar pelo vidro. Estaria andando pelo lado de dentro ou de fora? O desespero cresceu até se tornar um horror tamanho que, quando o vulto começou a dar pequenas batidas no vidro, o Sr. M. levantou-se e de um só pulo e acendeu a luz. Na janela, não havia sinal de roedor algum. Tentou dormir, mas quando quase atingia o sono, algum som acordava-o assustado. A noite toda foi assim. O pouco que o Sr. M. dormiu, dormiu mal.
Arrastou-se ao longo do dia seguinte. O sono e a raiva o impediam de trabalhar. O calor não o deixava descansar durante o dia. Ligou para o velho que lhe alugara a casa. Perguntou se conhecia alguma empresa de dedetização. Compra Matarrato que ele resolve o seu problema, foi a resposta que escutou. O Sr. M. costumava fazer as compras uma vez só por mês. Não era do tipo que saía todos os dias. Como tinha tudo o que precisava em casa, resolveu esperar, talvez o intruso se cansou dele e já tenha ido embora.
Não aconteceu. Novamente, enclausurado em seu próprio quarto e suando em bicas, acordou com o estrondo no forro. Não eram apenas quatro e sim mil patas. O teto parecia que iria despencar a qualquer momento. Era algum tipo de invasão? Será que ele matara algum líder dos roedores e eles agora o estavam perseguindo? Os barulhos cresceram na cozinha. Panelas caíam. Pratos quebravam. A sorte é que havia fechado as persianas da janela, pois a saraivada de arranhados e guinchos que acometeu contra ela não seria suportada somente pelos vidros. Totalmente horrorizado, cobriu-se com o cobertor. Suava agora não pelo calor, mas pelo medo. Eles invadiriam o seu quarto, o devorariam vivo até os ossos e não sobraria nada para contar a história. Tanto terror o deixou em um estado catatônico, não se importando mais com o que acontecesse. Não dormiu, porém também não parecia estar acordado. Quando o dia amanheceu, caiu em si e percebeu que o barulho cessara. Tentou localizar algum ruído. Nada.
Abriu a porta do quarto e o que viu foi destruição total. Na cozinha, os alimentos estavam todos perdidos. O cheiro forte de urina era insuportável. O chão estava infestado de pequenos bastonetes pretos com a ponta branca. Pegou um deles com um papel. Eram fezes. Foi quando se lembrou do seu trabalho. Correu para a sala e nada ali lembrava vagamente um aparelho que funcionasse. Estava mais para sucata, com fios retorcidos, vidros quebrados e tudo infectado pelo forte odor de urina. Todo o seu arquivo estava destruído. Ainda poderia recuperar pela memória algumas de suas criações, como a em que estivera trabalhando recentemente, mas seria um trabalho árduo. E o prejuízo, considerável. Aquilo foi a gota d’água. Era guerra. Limpou o melhor que pode a casa e correu para o mercado, onde comprou todo o estoque de Matarrato. O rótulo de cores berrantes prometia extermínio imediato, logo acima da caveira sorridente. As caixas traziam pacotinhos com granulados cor-de-rosa. Com a ajuda de uma escada velha, espalhou os pacotes por todo o forro, pelos cômodos, pelo quintal. A vingança é um prato que não se come, mas se prepara com todo o carinho para que o inimigo coma. De preferência, com veneno. Resolveu passar a noite fora, e quando o dia terminou, trancou a casa e saiu. Foi para um bar em que tocava música ao vivo. Pediu uísque e ficou ali até ser o último freguês, com a aurora despontando. Seus pensamentos eram um só, agora era uma questão de tempo para voltar a sua rotina.
De volta ao lar, percebeu que o amanhecer trazia um ar de tranquilidade a casa. Pareciam duas casas distintas, uma diurna, tranquila, suave e aconchegante e outra, noturna, amedrontadora, perigosa e fatigante. Apesar de procurar, não encontrou sinal dos pacotinhos cor-de-rosa. Todos haviam desaparecido. Enfim, havia vencido a guerra, mesmo perdendo algumas batalhas. Retomara o controle do castelo.
Não houve ruídos pelas próximas noites, e o Sr. M. pode colocar em dia todo o sono perdido. Também conseguiu, após comprar equipamentos novos, refazer parte do trabalho perdido. Tudo parecia ter retornado à normalidade quando, em uma tarde de sol, começou a sentir um cheiro putrefato. Não sabia exatamente de onde vinha, mas o sol só fazia aumentar o fedor. Estava no quarto, na cozinha, na sala, onde quer que fosse, cada vez mais forte. Passou a sentir o fedor impregnado a casa, os móveis, os objetos e até a ele mesmo. Viver ali era impossível, quanto mais trabalhar. Teria de abandonar a casa, se quisesse continuar respirando. E se quisesse finalizar o seu trabalho. Havia sido derrotado pelos mortos.
Texto-desafio do Duelo de Escritores de 11.02.2011, com o tema "bicho em casa".
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