Lugar de mulher é na livraria, por Gilberto Amendola


A lista de indicados como Melhor Livro do Ano, na categoria Autor Estreante, do Prêmio São Paulo de Literatura (oferecido pelo Governo do Estado), traz um dado estatístico interessante. Dos dez finalistas, oito são mulheres. São elas: Brisa Paim Duarte (A Morte de Paula D); Carol Bensimon (Sinuca Embaixo D’Água); Cintia Lacroix (Sanga Menor); Claudia Lage (Mundos de Eufrásia); Ivana Arruda Leite (Hotel Novo Mundo); Ivone Castilho Benedetti (Immaculada); Lívia Sganzerla Jappe (Cisão) e Maria Carolina Maia (Ciranda de Nós). As exceções ficam por conta de Carlos de Brito e Mello (A Passagem Tensa dos Corpos) e Edney Silvestre (Se Eu Fechar Os Olhos Agora).

Seria esse um sinal? Representaria uma visão feminina no front literário? Ou ser a esmagadora maioria concorrendo a um prêmio de R$ 200 mil é uma pista falsa? Aliás, existe mesmo uma literatura feminina? Quem responde primeiro é Carol Bensimon, 28 anos: “Quanto à literatura feminina, bem, acredito que algumas mulheres a pratiquem, quer dizer, recorrem a temas que costumamos relacionar com literatura feminina e têm um tipo de prosa “feminina”, enquanto para outras escritoras o gênero não é uma questão central.”

Carol reforça seu ponto de vista: “O mesmo acontece com a ‘literatura judaica’, por exemplo: você pode ser judeu e produzir uma literatura muito alinhada com o judaísmo, ou você pode ser um escritor casualmente judeu que não dá a mínima para questões religiosas.”

Já Lívia Sganzerla Jappe, 29 anos, considera o sucesso feminino na literatura um dado relevante. “Se você pensar que até o século 18 não existiam mulheres escritoras – e se existiam assinavam com nomes masculinos… Acho interessante, sim. Embora faça literatura, não literatura feminina”, diz.

Não fazer ‘literatura feminina’ parece ser um ponto incomum entre as escritoras. “A questão de gênero pouco importa. Somos oito escritoras diferentes, com estilos também diferentes”, fala Ivana Arruda Leite, 59 anos. “Até existe uma literatura feminina, mas acho que não me encaixo nisso. Como também existe um jeito masculino de ver o mundo, que também não é o meu”, comenta Ivone Benedetti”, 63 anos. “Também poderia acontecer um recorte por idade. O que, na minha opinião, seria uma besteira. Tem gente que publica bem aos 20 anos e gente que publica mal aos 20 anos. E é claro, tem gente que pública bem aos 60 e gente que publica mal com essa idade.”

Carol levanta outra questão, tendo como base a mesma estatística, mas outra categoria do Prêmio, a de Melhor Livro do Ano – categoria em que não existe nenhuma mulher entre os 10 finalistas. “O fato de haver 8 autoras deve querer, sim, dizer alguma coisa, mas acho que é necessário comparar esse dado com um outro: na categoria dos autores não-estreantes, não há sequer uma mulher. É possível que isso queira dizer que há mais mulheres escrevendo nesse momento do que homens, mas que poucas acabam se consagrando. Outra interpretação (que não invalida a anterior) é que o quadro pode mudar nos próximos dez ou quinze anos.”

O resultado do Prêmio São Paulo de Literatura será divulgado no dia 2 de agosto, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. (edit: e não é que quem ganhou o prêmio foi um homem? Veja o resultado)

Leia trecho dos livros selecionados:

Ciranda de Nós
(Maria Carolina Maia)
Não é de mim que eu quero falar. É que acabo dando comigo quando me ponho a vasculhar a memória em busca de informações sobre São José. Lá onde, como disse, desaprendi a viver. Ainda bem. Porque o que eu conhecia de vida até ali era muito sem graça (…)

CISÃO
(Lívia Sganzerla Jappe)
A vida, por enquanto, inteireza. Inácia partiu insatisfeita. Desejava atacar a fronte intelectual de Theodoro por saber que desequilibrava em melhores condições o que ele carregava em emoções. Intelectualizar a imagem de Theodoro era, para Inácia, redimi-lo da falta de precaução com que lidava com o amor. Eram as fissuras dos diálogos que lhes mantinham. Quando havia compreensão por demais explícita, algo se desorganizava sem que se soubesse dizer o que era. E era ela, então, quem se habilitava a quebrar e
recozer palavras (…)

IMMACULADA
(Ivone C. Benedetti)
Parou diante dela e lhe pediu que tirasse a camisola. Immaculada fechou os olhos e obedeceu. Ele ficou algum tempo admirando a silhueta da moça e lhe fez um sinal para deitar-se. Ela não viu, estava de olhos fechados. Ele pediu. Ela obedeceu, deitou-se e, de olhos fechados, voltou o rosto para o outro lado. Pressentiu que ele se despia, percebeu que se deitava ao seu lado e sentiu que lhe apartava as pernas e introduzia devagar um dos dedos em sua vagina(…)

SINUCA EM BAIXO D’ ÁGUA
(Carol Bensimon)
E como tirar os rollers depois de andar um bocado e sentir que os pés e o chão não se entendem mais. Você quer deslizar, passar flutuando pelas coisas e pessoas, e já não pode. Então pensa Tudo bem, adiante, vamos caminhar agora, caminhem direito por favor, mas não tem jeito de conseguir sem um pouco de tempo, porque os rollers ainda estão em voce de certa maneira (…)

SANGA MENOR
(Cíntia Lacroix)
Nas horas miúdas da manhã, Lírio costumava mover-se com vagar. Ou, como objetaria a velha Margô, com vagar ainda mais vagaroso. Poltrão!, diziam os olhos de pedra da tia-avó ao avistarem o estremunhado vulto no alto da escadaria, branco comoum fantasma, por causa do talco que ele empoava no rosto e nos cabelos. Sim,Lírio usava talco para limpar-se das viscosidades do sono, pois o contato com
a água, antes do meio-dia, doía-lhe como bofetada (…)

MUNDOS DE EUFRÁSIA
(Cláudia Lage)
Nossa Senhora da Conceição foi testemunha silenciosa de um encontro repleto de atropelos e desacertos. Nabuco vinha com intenções febris, mas estremeceu de uma inibição que não conhecia diante das mulheres. Pelas circunstâncias, achava que Eufrásia estaria ao menos um pouco trêmula. Mas não, ela tinha uma certeza assentada por dentro que lhe tirava as suas. Era uma mocinha, afinal, que encontrava às escondidas um homem. Afinal, era uma mocinha que não conhecia os homens. E lá estava ela, com seus olhos escuros voltados para ele, chamando por ele, com uma simplicidade desconcertante (…)

HOTEL NOVO MUNDO
(Ivana Arruda Leite)
Detesto conversar com estranhos, todo mundo sabe disso, menos esse cara que sentou ao meu lado. Desde que saímos do Rio de Janeiro, ele não para de falar.
— Eu não costumo andar de avião, mas estou tranquilo.
Sabia que é mais seguro que automóvel? As estatísticas mostram isso.
Claro que ele não estava tranquilo. Sua última viagem de avião deve ter sido também a última vez que vestiu esse terno cheirando a armário (…)

a morte de paula d.
(Brisa paim)
ligo a tv e a mulher loira fala coisas que não posso entender é uma linguagem nova um dialeto no qual as palavras-coisa se entortam e se enrolam e se derretem de sentido. e parece que lhe saem ao invés de palavras borboletas da boca borboletas tão felizes e displicentes e despreocupadas e amarelas tão de bem com a vida essas borboletas modernas até parecem mesmo flores, grandes flores, e eu tenho a impressão de que de algum lugar já conheço essas borboletas. e elas vão voando e voando e voando e voando e alcançam o céu o grande céu vastíssimo céu da televisão e provam que são realmente borboletas grandes borboletas voadoras e leves e com muito muito mesmo potencial borboletas responsáveis e conscientes de seu trabalho, difícil trabalho de serem tão borboletas e tão lindinhas e tão importantes (…)

Fonte: Jornal da Tarde

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