Olho Mágico
Os medos, por serem constantes,
moldam mais profundamente a personalidade
que os momentos efêmeros de coragem.
A campainha tocou enquanto Christina se enxugava. Maldito quem quer que fosse. Não deveria haver perdão para o crime capital de interromper o sagrado ritual pós-banho. Telefones e campainhas pareciam construídos obedecendo a Lei de Murphy para tocarem justamente nos piores momentos. Jogou o roupão sobre o corpo e dirigiu-se apressadamente para a sala. Contudo, estacou frente à porta fechada. Nunca gostara de olhos mágicos. Era uma coisa infantil, ela sabia, mas não conseguia explicar o motivo. Talvez por eles se assemelharem a minibolas de cristal prontas a prever as piores desgraças. Quem ousasse usá-los poderia se deparar com os piores tipos de prisioneiros distorcidos em uma Zona Fantasma de vidro: visitas indesejadas – parentes inconvenientes, síndico intrometido, pregadores fanáticos – ou pior: alguma cena de filme de terror ou pior ainda: um completo vazio dalilesco. Porém, no exato segundo entre o tomar coragem e o finalmente agir, escutou a porta do apartamento ao lado se abrindo. Suspirou. Outra vez o mal de se morar em prédios de classe média pregava-lhe uma peça. Campainhas, brigas, saltos altos, gemidos, programas de teve e músicas de gosto duvidoso são os fantasmas invasores da privacidade entre as finas paredes de compensado. Mas a curiosidade de Christina quis espiar. Aproximou-se da porta. Reconheceu o perfil do vizinho do 301, baixinho rumando em alta velocidade para o país dos carecas, segurando uma grande caixa cinza, estático em frente ao 304. Provavelmente conversando com o misterioso morador do 304. Há aproximadamente dois meses Christina tentava em vão ver a cara do novo vizinho. Se não tivesse presenciado ela mesma o pessoal da mudança carregando os móveis poderia jurar que o apartamento continuava vazio. Descobrira desde então que pior que ouvir os sons alheios era não ouvir absolutamente nada.
- Bom dia, sou o Agenor, o morador do 301, aquela porta ali.
- Ah, sim, desculpe incomodar, eu só vim trazer esta caixa que chegou por engano lá em casa. Acho que é sua. O seu nome completo é este que aparece na etiqueta?
- Tá bom, tá bom, não precisa ser rude, só estou tentando cumprir meu papel de bom vizinho.
- Por que a caixa está aberta? Novamente peço desculpas. É que eu estava esperando uma encomenda ser entregue para mim esta semana. E como o Sebastião da portaria entregou a caixa, acabei levando para casa sem olhar remetente, destinatário, nada. Cheguei lá e fui logo abrindo, mas quando olhei o conteúdo percebi que não era para mim. Vi que fora um engano.
- Desculpe, desculpe, não precisa se exaltar. Eu juro que assim que vi o que tinha na caixa voltei a fechá-la imediatamente. Aliás, são coisas bem perigosas essas aí, eu não quis ficar com elas comigo por muito tempo. Só que vim aqui mais cedo e você não estava.
- O quê? Você estava em casa? Foi por volta das oito. Talvez estivesse no banho ou dormindo. Em todo caso, me desculpe pelo transtorno.
- Não, não, agradeço o convite mas não posso demorar. Tenho algumas coisas a fazer em casa.
- Tá bom, tá bom, já que você insiste. Mas só se for por alguns minutos. Algo quente cairia bem com este frio… Com licença.
Foi a última vez que Christina vira o seu Agenor. No início ela não vinculara o desaparecimento do vizinho com a cena que presenciara. Quando a esposa voltara da visita à mãe não o encontrara mais. Ninguém duvidava que ele finalmente tivesse trocado uma de quarenta por duas de vinte. E Christina só foi lembrar do acontecido quando outros vizinhos começaram a desaparecer e um investigador policial apareceu em sua porta, atrapalhando o chá das três. Não senhor, ela não sabia de nada, mas confessou baixinho que achava suspeito nunca ter visto ou ouvido a voz do vizinho do 304. Ele deveria ser investigado. E, puxando uma rede pesada lá do fundo da memória, ela parecia lembrar de algumas vozes passageiras no hall de seu andar nas últimas semanas. Dona Rosinha pedindo emprestada uma xícara de açúcar. O filho do seu Claiton vendendo uma rifa da escola. Não tinha como afirmar com certeza se eram realmente eles, pois abominava o maldito olho mágico, mas era possível. O investigador comentou que ninguém atendera no apartamento ao lado, mas ele voltaria em outra hora para tentar novamente. Christina pegou o cartão do policial e repetiu mentalmente a sua frase de despedida. Prometo ligar caso me lembre de algo mais. Fechou a porta e passou as três trancas que havia mandado instalar. Deixou os problemas do mundo do lado de fora. Enquanto caminhava lendo os dados do cartão, tropeçou na caixa cinzenta abandonada no canto da sala e soltou uma imprecação. Sentou-se no sofá esticando as pernas sobre a mesa de centro, não sem antes depositar o cartão entre as folhas de um pequeno bloquinho numerado. Pegou novamente a xícara cor de rosa que havia abandonado quando fora interrompida e voltou a bebericar o seu chá de ervas exóticas favorito. Droga, estava agora completamente frio.
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