Resenha de A Metamorfose, de Franz Kafka


Os bons livros têm a capacidade de proporcionar o prazer ao leitor de se deparar com uma nova obra a cada releitura. Não é que o livro tenha mudado, é o leitor quem mudou, conforme as novas experiências e conhecimentos que acrescentou à sua cultura e vivência. A Metamorfose, de Kafka, dispensa apresentações, por ser um dos livros mais lidos, conhecidos (mesmo por aqueles que não o leram) e influentes do século XX. Eu já havia lido ele duas vezes, além das duas versões em quadrinhos, mas nunca havia interpretado a história como desta vez. E é bem possível que na próxima releitura apareça uma nova interpretação, e assim por diante. 

Um aspecto do livro que sempre me perturbou era como a família e outras pessoas (gerente, empregadas e locatários), e até o próprio protagonista, encaram com a maior naturalidade a transformação de Gregor Samsa em um “inseto monstruoso”. Eles reagem com repulsa, raiva e até com comiseração, mas nunca acham aquilo anormal. Apesar de esta ser uma das características da escrita fantástica, e se a intenção de Kafka fosse outra? E se ele se utilizou de uma metáfora de um acontecimento corriqueiro na maioria das famílias para fazer uma crítica social? Por isso, comecei a pensar que Gregor na verdade não se transformou em um inseto, mas que o narrador (não confiável) da história simplesmente expressa como o protagonista passou a se ver a partir do momento em que se tornou inútil, impotente e um fardo para a família. Qualquer pessoa com depressão conhece bem esse sentimento. Então, pergunto: quando é que alguém perde de repente a capacidade de trabalhar e de se comunicar, tendo de se esforçar sobremaneira para se locomover ou para enxergar à distância e muda os hábitos alimentares deixando de comer os alimentos que antes lhe eram prazerosos? Quando adoece. 

Uma doença incapacitante faz com que quem antes era o provedor passe a ser auxiliado pela família. Na história a doença o incapacita fisicamente, mas não intelectualmente. Gregor continua pensando nas suas responsabilidades laborais e familiares, se preocupa como a mudança em sua condição afetará o futuro da família. Os planos que antes havia feito para si e para a irmã continuam ativos em sua mente. E, justamente por continuar mentalmente ativo é que se imagina um inseto, um monstro, um fardo e uma maldição para os seus. Ele não é mais o homem trabalhador necessário ao conforto de sua família. Uma pessoa que antes era livre para viajar com caixeiro-viajante e agora precisa ficar confinado no quarto (revezando-se entre a cama e o canapé) pode se sentir a pior criatura do mundo. Ainda mais quando percebe as reações escondidas ou não verbais da família à sua mudança de condição: o pai com raiva, a mãe com dó e a irmã com consideração. Um doente que passa a não ser compreendido pelos demais. Um doente que no começo é cuidado com atenção, mas que com o tempo passa a atrapalhar a nova rotina. Ele não se encaixa no novo ajuste familiar. Pense em quantos parentes hoje, ao se verem diante de alguém acamado, reagem das mais diferentes formas. Há os bons samaritanos que se tornam enfermeiros mesmo sem ganharem nada com isso, há os de mentalidade proativa que buscam novas fontes de renda visando arcar com as novas despesas, e ainda há os que pensam que o melhor para todos seria que o doente morresse logo. Todas estas reações aparecem em A Metamorfose, explícitas nos diálogos ou implícitas nos comportamentos. Mas que eu, como leitor, só consegui percebê-las, quando deixei de lado o elemento fantástico e o considerei como elemento psicológico. Por ironia do destino, como Kafka escreveu a novela em 1912, pode ter antecipado a sua própria metamorfose quando, anos depois, foi diagnosticado com tuberculose e precisou ser internado diversas vezes ou cuidado pela família, principalmente pela irmã.

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