O primeiro dia depois do fim do mundo


Viu-se subindo uma pastagem e, ao sentir o vento em sua barba, imaginou ser um viking. Sorriu de leve com o pensamento e para coroá-lo soltou um grito, bárbaro, másculo, insano. Ao longe, ouviu o barulho de cães brigando por algo, provavelmente uma carcaça. Mudou de rumo caminhando para o outro lado, não vira nenhum corpo há dois dias e não desejava zerar a contagem. Ao chegar no alto do morro, avistou uma fazenda, com casa, curral e paiol. Agachou-se, arrancou uma haste de capim e a colocou na boca, mastigando enquanto observava enquanto pensava. Isto apaziguava o seu medo de prosseguir. Pensava ser o homem mais sortudo da Terra, por ser o único sobrevivente, ou o homem mais azarado da Terra, por ser o único sobrevivente. Não sabia o que temia mais encontrar: um morto, um vivo ou um morto-vivo. Se bem que só havia encontrado do primeiro tipo há semanas. Depois de um tempo, como nada se movera, ele resolveu se mover em direção à sede. A necessidade o forçava, precisava reabastecer as garrafas d’água. Enquanto se aproximava, refletiu em tudo o que o destino estava abrindo mão para ele: festas de fim de ano com parentes insuportáveis, agora inexistentes, sorrisos falsos a colegas de trabalho mais falsos, também inexistentes, a venda de seu tempo de vida em troca do pagamento de contas e coisas que não queria ter, mas que era socialmente forçado a ter, tudo inexistente, tudo passado, tudo lembrança. Não viria a ter família, filhos, dívidas e aposentadoria. Em um mundo normal seria taxado de louco. Agora era ele quem taxava aquele mundo de louco. Estava aprendendo a ser feliz com detalhes, a ser o Deus das observações. Havia um poço ao lado da casa e, ao puxar o balde, percebeu que a água era boa. Talvez desse sorte em encontrar alimento dentro da casa e

- Olá...

Virou-se rapidamente para encontrar como dona da voz uma mulher segurando uma foice, mais assustada que ele.

- Não, não se assuste, você pode pegar a água que quiser. É que eu não converso com alguém faz tempo e estou feliz em saber que não sou a única pessoa que sobreviveu e

O tiro a atingiu no meio da testa. Ele esperou um momento antes de guardar a arma na cintura e voltar a encher o cantil. Tudo de volta ao normal. Menos a droga da contagem, agora duplamente zerada.

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