Gabriela

Você é o pai, ela disse. E foi nessa frase em que me perdi e acabei não ouvindo mais nada. Não ouvi ela discorrer sobre exames pré-natais, enxovais e fraldas. Nem sobre contarmos juntos ao pai dela, ou sobre morarmos juntos ou sobre pararmos de ir em festas nos finais de semana. Não prestei atenção em muitas coisas que ela me falou naquele dia, mas isso não fez muita diferença, pois ela fez questão de relembrar tudo por todos os dias nos oito meses de gravidez que ainda estavam por vir. Naquele momento eu só pensava em uma coisa: eu vou ser pai. Eu vou ter um filho, ou uma filha. Vou poder passear no parquinho, brincar no tapete da sala, dormir abraçado com alguém com cheirinho de talco e óleo infantil. Eu vou ser pai. Eu vou ser pai. Pai. Eu.

Não que eu tivesse esperando aquilo, pois provavelmente sem esta reviravolta a viagem de um mês mochilando pela Europa estaria no meu cronograma. Ter um filho, ou uma filha, é muito mais emocionante. Já fazia algum tempo depois do término da faculdade que começara a sentir um vazio existencial. Algo havia mudado, alguma coisa faltava na minha rotina, e eu não sabia o que era. Não tinha nenhuma pessoa em especial em meu coração para pensar em casamento. Porém, vez por outra me pegava observando amigos e conhecidos com os filhos. Os seus acertos e erros, as suas alegrias e raivas. Acho que era exatamente este tipo de relação que eu ansiava antes mesmo de saber.

Os meses de gravidez se passaram com brilho de novidade. Os pais da Juliana aceitaram bem o fato de não morarmos juntos. A Juliana terminaria a faculdade de fisioterapia após a gravidez e eu procuraria um emprego melhor. Professor estadual com contrato temporário não garantiria o sustento de uma família. Mas os horários em que não dava aulas me forneciam tempo suficiente para acompanhar o desenvolvimento da criança. Da minha filha. Sim, o ultrassom revelou que Gabriela era uma menina saudável. Nome bíblico, significando enviada de Deus. Com a ajuda da minha família e da família de Juliana, conseguimos juntar um bom enxoval, comprar o berço, fraldas descartáveis suficientes para montar uma pequena distribuidora e planejar como seriam as nossas rotinas pelos próximos anos. Pelo menos, era o que eu pensava.

Todos os familiares acompanharam ansiosos o tão esperado dia do nascimento. Eu dormia na casa da Juliana já há três dias procurando ser útil de alguma forma. Se bem que na hora H, o seu Anísio foi quem controlou a situação, já acostumado com os três filhos que a esposa tivera. Alias, tornamo-nos ótimos amigos, ele me aconselhando sobre as coisas que eu deveria fazer e as que eu deveria deixar de fazer. Eu guardei cada conselho como se fosse um bem precioso. Aconteceu no começo da manhã, por volta das sete, e estávamos todos tranquilos, Juliana com contrações regulares e espaçadas. Apesar do sorriso parecia cansada e quando chegamos à maternidade, ela desmaiou. A equipe médica a socorreu de imediato. O obstetra foi chamado com urgência. Ficamos todos apreensivos, recebendo algumas notícias de uma enfermeira prestativa. Eclampsia era o nome do problema. Juliana tivera algumas convulsões na mesa de parto. A enfermeira, uma senhora idosa, tentava nos acalmar dizendo que já presenciara outros casos semelhantes e que era comum tudo acabar bem. Não foi o caso de Juliana. Apesar de tomar todos os cuidados durante a gestação e muitas vitaminas, o que o médico nos contou depois foi que, apesar do bebê crescer saudável, a constituição física da mãe era frágil. Ela não resistiu ao parto. Minha filha nasceu no mesmo dia em que a mãe morreu.

É estranho ter a sensação de ganho e de perda ao mesmo tempo. Alegria e tristeza. A vida tem um jeito engraçado de nos ensinar a usar as alegrias para compensar as tristezas. Eu era agora o único pai solteiro dentre os meus amigos. Dentre todos os que eu conhecia. Mas também era o único com um presente enviado por Deus. Indiferente à dor dos que estavam ao seu redor, Gabriela estava feliz e saudável. Cercada de mimos e carinhos, a levei para a minha casa e, com a ajuda dos meus pais e de meus ex-futuros sogros, conseguimos criá-la com os cuidados que toda criança merece. Mesmo com as dificuldades financeiras, com as noites mal dormidas, com as preocupações a cada febre, vômito ou virose, minha vida mudou para melhor. Finalmente senti que estava completo, ser pai era o que me completava.

Alguns meses depois, passeava com minha filha pelo parque quando encontrei uma conhecida da faculdade. Era uma ex paquera que eu tivera antes da Juliana e que retornara do exterior naquela semana. Optei por não mencionar sobre a morte da mãe para que Gabriela não viesse a crescer ouvindo aquela história e se sentisse culpada no futuro. Foi o meu erro naquela tarde. A minha ex relembrava as festas e farras que frequentávamos e os conhecidos que tínhamos em comum. Depois de citar alguns nomes, fez uma cara séria e me perguntou sobre a Juliana. Perguntei o porquê e ela me contou que uma noite a encontrara chorando desesperada no banheiro de uma boate. Ao tentar acalmá-la, Juliana acabou confessando que estava grávida e o pai da criança não queria nada com ela. O tal cara era casado.

- Não, não soube mais nada a respeito da Juliana – respondi, e apontando para a Gabriela, que naquele momento dormia – A minha princesinha aqui exige todo o tempo que eu possuo.

Trocamos telefones e combinamos que nos encontraríamos outro dia qualquer para mantermos as fofocas em dia, mas este dia nunca chegou. Afinal, ela era a única que poderia revelar que eu sempre soube do segredo que Juliana levara para o túmulo.

Comentários

  1. Olá, amigo. Por sentir falta de uma boa leitura passei por aqui. A estória alcançou o que me parece difícil: ler ficção como se o personagem fosse real. Um drama e tanto. Parabéns, Jeff. E feliz natal. :)

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